Projeto Geladeira Literária, criado em 2014, consiste numa velha geladeira transformada em pequena biblioteca, encontrada em 28 locais de Caçador (SC), terra natal também do escritor e homem público Salomão Ribas Júnior e onde foi construído um dos primeiros aeroportos brasileiros, chamados então campos de aviação, para utilizar pela primeira vez o avião como arma, o que ocorreu na Guerra do Contestado. Também poeta, Silmar Bohrer nos propõe à publicação um texto em prosa sobre Laguna (SC). Veja a amostra da literatura do autor por este fragmento. (Deonísio da Silva)
LAGUNA: UM SABOR DE HISTÓRIA
por Silmar Bohrer
E foi naquela manhã nublada e quente de
quarta-feira que resolvemos conhecer uma das
mais belas páginas da História do Brasil.
Já havia três dias que o sol e o mar nos
seguravam à beira da praia. Neste contato com
a natureza cálida e fremente, foi quase apagada
a ansiedade de chegar aqui, onde o histórico
é uma constante. Mas agora no portal da cidade
vejo transportada dos livros e da memória para
a agradável realidade, a imagem trazida dos
tempos de ginasiano e o pitoresco que a
história não conta, da terra em que nasceu e
viveu por muito tempo dos poucos anos de
sua existência, a invejável Anita Garibaldi – o
personagem feminino mais forte nos anais da
história pátria meridional.
Eis que chegamos a Laguna – embrião e
capital da República Juliana, que não durou
mais de cem dias. Um período curto no tempo,
suficiente, porém, para na sua eternidade nos
lembrar que aqui nasceram e frutificaram os
primeiros e legítimos ideais de liberdade do
povo sulino, impregnados de ideias fortes e
sonhos grandiosos – sementes trazidas das terras
de além-mar que se misturaram com idealistas
nativos.
Sob este sol tórrido das nove horas,
percorremos de carro as ruas que dão acesso
a centro da cidade – que é ao mesmo tempo
centro comercial e cultural de um povo e de
uma época.
Aqui se passaram momentos duais que a
então Freguesia de Laguna deixou gravados
em capítulos sublimes para as gerações que
se sucedem no tempo – o fragor da derrota e
a alegria da vitória, o amor incontido e o ódio
implacável, o sentimento de liberdade e o
insólito da opressão.
Nesta terra de mares verdes e terras lindas
se desenrolou o mais belo episódio que o nosso
romanceiro terá escrito: o amor e dedicação de
Anita Garibaldi a Giuseppe, o herói universal
que aportou em Laguna em julho de 1839 para
conhecer a mulher que mais amou na vida, e
protagonizar o romance que uniu duas pátrias
e dois mundos.
Caminhamos pela praça da Matriz, onde as
palmeiras parecem centenárias, contemporâneas
da própria igreja. Reza a história que Anita teria
casado aqui na velha igreja e festejado suas
núpcias na casa ao lado, no outro quarteirão, que
pertencia a uma costureira, sua amiga. A “Casa
de Anita”, restaurada segundo o original, contém
objetos que pertenceram à ilustre lagunense,
inclusive ótimo documentário da família Garibaldi,
tendo perdurado o original da sua certidão de
casamento.
A cada passo e novo olhar, aqui e acolá,
sente-se a presença do pictórico e do original
nas praças, nas árvores, nos casarões
centenários. O prédio que abriga o Museu Anita
Garibaldi, situado na praça onde se ergue a
estátua da lagunense, é um desafio à imaginação:
duzentos anos…? Trezentos…? Quantos anos…?
Informa a recepção que o prédio foi presídio
de escravos, insurretos e revolucionários.
A originalidade das portas com madeira grossa,
as janelinhas características, o assoalho de
tijolos, o forro a mais de seis metros de altura,
com grossas travessas, nos levam a imaginar
quantos estiveram aqui encerrados. No seu
interior, um acervo respeitável de peças raras
que hoje são História. No andar de cima
funcionou em tempos idos o Paço Municipal.
Caminhamos ao leu novamente. As ruas
centrais, verdadeiros becos – e eles são uma
constante em Laguna – são as mesmas por onde
terá andado na sua juventude a independente e
decidida Anita, e das suas andanças por aqui é
provável que tenha burilado as ideias firmes do
sólido das mesmas pedras em que pisamos,
e inspirado seus sentimentos no mesmo céu
azul que nos inspira agora.
Na caminhada que fazemos pelas ruelas,
vamos observando a dualidade existente em
Laguna – casarões antigos, centenários,
contrastando com habitações e prédios
recentes, dando a impressão do cultivo do
histórico aliado ao conforto do moderno, nos
fazendo sentir que o legado cultural dos
antepassados não foi esquecido, mas
permanece vivo e cultuado pelos filhos da
terra. E aqui o preceito de que a cultura de
um povo é tanto maior e mais sólida, quanto
mais está arraigada no seu passado histórico
e cultural.
Quando se caminha sem preocupação por
estas ruas movimentadas, cheira-se a idade,
sente-se o sabor histórico, e ao exalar o perfume
das flores nestas praças com seus segredos
insondáveis, são ares centenários que passam
pelas nossas narinas. E há em cada esquina
um toque mágico de poesia – do eterno e do
imperecível, o eflúvio do desconhecido, a
reminiscência de uma época.
Deixamos Laguna, o bucólico dos seus
mangues e o colorido dos barcos pescadores,
ao final da tarde, quando o sol já não passava
de uma doce promessa de companhia de
praia na manhã seguinte.
(Laguna, janeiro de 1980)
* FOTO DE FELIPPE LOPES