Decorridos sete dias que a alma de um amigo comum partira para o destino judicatório de todas as almas, vi na missa Flaviano ajoelhar-se no momento em que se realizou o augusto mistério da transubstanciação.
Gilberto Callado (*)
Decorridos sete dias que a alma de um amigo comum partira para o destino judicatório de todas as almas, vi na missa Flaviano ajoelhar-se no momento em que se realizou o augusto mistério da transubstanciação. Enterneceu-me sua atitude tão respeitosa e piedosa, para os tempos de hoje, em que as pessoas – não são todas – veem o mistério eucarístico como mero símbolo, como ritual a ser repetido no relato bíblico da Santa Ceia, sem acreditar no sacrifício consumado no altar, sacrifício de todas as missas e de todas as consagrações efetuadas por aqueles sacerdotes que tenham essa intenção.
Tempos antes, na varanda de sua casa, em nossos diálogos multifários, demonstrou-me ele espantoso ceticismo, que mais pertencia a uma pessoa confusa e em busca de fé que a um agnóstico empedernido, fechado a qualquer diálogo e a qualquer argumento que invoquem a existência de Deus.
Perguntei-lhe, depois, num encontro casual, se aquela genuflexão dizia algo de fé, de uma fé que podia estar adormecida em sua alma, esquecida da vida cotidiana.
Sua resposta não me convenceu totalmente.
– Fiquei de joelhos para seguir o rito.
Retruquei-lhe, em seguida, gravemente, para não dar tempo de crescer sua autoconfiança.
– Lá no fundo penso que sua atitude não foi apenas ritual.
– Não, não, eu acompanhei a cerimônia como simbolismo, nada mais do que isso.
Não estava mesmo convencido. Seus olhos impenetráveis pareciam guardar a entrada de uma catedral incendiada pelo misterioso fogo da modernidade ideológica. Estaria eu enganado? Não haveria em seu coração mínima centelha de fé? Da catedral poderia haver cinzas… e, debaixo dessas cinzas, alguma pequena combustão movida a lembranças. Mas se ela, a Catedral do Céu, não mais se desenhava em seu espírito, seria muito difícil crer ele além dos limites dos sentidos e da razão.
Lembrei então que a mente humana costuma produzir os seus fantasmas, muitos dos quais pululando na antessala da Verdade, impedindo que entremos nela para ver as coisas como são. Lembrei, ainda, que a natureza humana tem seus limites racionais definidos por sua essência e que para retirar do homem o sentimento de criaturidade implicaria numa “mutação ontológica”, o que não era o caso de meu amigo, nem de ninguém. Teria havido nele, certamente, uma combustão lenta e inconsciente da fé, uma erosão gradual que, talvez, não tenha chegado à conclusiva desaparição. Tudo era muito confuso diante daqueles olhos impenetráveis.
Procurei ser mais suave. Minhas misérias impeliam-me a recrudescer os argumentos, para a severidade hirta, pueril, acalentando-me a presunção, e tive de contê-las. Fui por um caminho meloso, diferente de como o Divino Mestre admoestou o apóstolo incrédulo, com um modicaefidei.
– Veja bem, seu gesto foi diferente dos que estavam próximos. Eles nem se puseram de joelhos, nem se dignaram a fazer reverência ao Cristo presente em corpo, sangue, alma e divindade.
– Não, a única diferença entre os que ficaram em pé e eu – retrucou Flaviano, um pouco contrafeito pela minha insistência – é que eles talvez ainda tenham fé.
– Ah, é? E por que eles não ficaram de joelhos? Quem não ficaria diante do Mistério, em que Deus, por meio do sacerdote, realiza a obra de transubstanciar as espécies visíveis do pão e do vinho?
– Ora, meu caro, nem todos pensam como você. Eu, pessoalmente, respeito sua fé, mas não conte com a minha.
– Claro! Também o pensamento do Redentor difere do nosso pensar, porque é infinitamente superior. Isto, se não me engano, está em Isaías. Não quer isto dizer que Ele não esteja aqui, ou que também não estivesse lá, naquele pedacinho de hóstia, diante da qual te prostraste.
Seus olhos continuavam impenetráveis. Percebi então que a minha conversa estava perdendo força, porque ele não saía de sua posição incrédula. Seu modo de sentir e de pensar era o de um homem contemporâneo, fincado nas coisas do mundo, mas havia nele qualquer coisa de misteriosa, de inescrutável, que, apesar de oculta, parecia soar muito tenuamente em seu interior.
Arrebatou-me, de repente, um surto de entusiasmo.
– Pelo menos você não atacou a Igreja, nem renegou a Cristo.
Fez-se curto silêncio. Seus olhos desviaram-se dos meus por um momento. Pareceu ele ter buscado palavras sem encontrá-las. Esperei que me respondesse ao comentário, e o que vi foi algo disperso.
– Ora, por que eu faria isso?
– Quem deve saber não sou eu.
– Não teria por que fazê-lo; respeito todas as crenças; quem quer crer que creia, e eu não preciso tripudiar em cima disso.
– Também não precisava fazer a genuflexão…
– Foi um hábito.
– Ah! Um hábito. Quer dizer que no passado você ia à missa?
– Sim, faz muito tempo. Minha mãe era muito católica; eu e os meus irmãos fomos criados nesse sistema, quer dizer, nessa religião.
– E por que você fala como se nada tivesse a ver com esse passado?
– Porque eu perdi isso – respondeu muito íntimo, com certo aconchego. Descobri novos caminhos, tive outras experiências. As misérias do mundo e suas múltiplas opções ideológicas me fizeram desacreditar de muita coisa, de modo que, hoje, penso que somos a medida das verdades do mundo. Não fosse assim, a história do homem não nos apresentaria tamanhas mudanças, e a ciência não chegaria tão longe. O que importa mesmo é o obséquio da razão ao coração, único instrumento de experiência sensível para ver o mundo com outros olhos, sem os preconceitos e imposições de uma razão cativa. Penso que sou mais livre, abraçando as coisas com o coração, e tomando distância dos predicadores das religiões. Eles têm os seus motivos e eu tenho os meus. Não é mais fácil viver assim, na antepaixão de cada momento? Viva e deixe os outros viverem.
O diálogo parecia-me traiçoeiramente familiar, porque suas palavras introduziam-se em meus ouvidos furtiva e despretensiosamente, com grande dose de sinceridade, longe daquela vaidade audaz, de vanglória, que caracteriza a alma de certos agnósticos empedernidos e pretensiosos. Senti em sua conversa mansa e sincera a perigosa mescla da confiança, quase entrando no terreno da onipotência. Não pude resistir ao aprofundamento da questão, mas me aproximando já, naquela escalada de verdades e erros, da perigosa fronteira entre a razão e a fé. Disse-lhe em tom prudente:
– Em cada uma dessas emoções que o seu coração produz, Deus está presente.
– Como saber se é Ele, se as emoções são minhas? indagou rapidamente.
– Pela imaterialidade delas. Será que as células humanas, por serem matéria, podem ocasionar algo imaterial?
Flaviano continuava impassível. Ria pouco. Sua tez, quase sempre grave, não dava nenhum sinal de receptibilidade e, muito menos, de convencimento. Para não dar a impressão de que estava me distanciando do tema proposto, perguntei-lhe se havia sentido alguma emoção no momento solene daquela missa.
– Bem, a missa evoca o meu passado, declarou procurando afastar-se do assunto.
– A missa possui em si mesma uma dimensão divina, redargui imediatamente – identifica-se com o sacrifício do Verbo humanado. Não podemos falar da missa sem meditar os mistérios dolorosos, as dores Daquele que pagou alto preço pelo nosso resgate. Se não reconhecermos nossas misérias, nosso decaimento desde a origem e a consequente redenção de Nosso Senhor Jesus Cristo, não terá nenhum sentido discutirmos a causa de tua genuflexão. E qualquer verdade se dissipará no mare magnumdo relativismo. Então, se assim for, para que crer, para que orar, para que ajoelhar-se diante dos símbolos?
– Sempre há uma satisfação nisso, ponderou, o homem precisa de certas cerimônias.
– Ora, meu caro, o tempo urge, aproveitamo-lo a toda a brida, que o corpo morre e tudo se acaba; não é assim que você pensa? Quando o amanhã nos disser que chegou a hora, quando os nossos sentidos já não terão o seu aprazível objeto, de cerimônias ou que seja, quando na certeza da morte voltaremos a ser o nada, ou o não-ser, que nos restará a fazer senão voltar os olhos ao passado e ver com profunda tristeza tudo aquilo que gozamos e que deixamos de gozar? E projetando a vista para o porvir, não resistiremos à tentação de maldizer, com irresignável tristeza, a ruína de nosso ser.
– Não é bem assim, tentando ele arrefecer o pessimismo que o meu argumento destilava. – As pessoas vivem a sua vida, algumas com a sua fé, e isto é importante porque…
– De fato, interrompi-o. – Todo o ser humano tende ao transcendente, e as relações de cada alma com Deus são um mistério que paira absolutamente acima das inteligências. Na Jerusalém Celeste ou no Vale de Hinnom veremos se essas relações eram boas ou más. Se foram boas, as pessoas já começam a preencher as zonas insatisfeitas de seu coração até que, no fim da prova, terão a felicidade perfeita e plenamente saciada. Do contrário, os resíduos de tristeza que se vão acumulando na alma daqueles que habitualmente vivem preocupados com o mundo, devorados por uma sede insaciável de prazeres e diversões, e entregues a uma ignorância religiosa espantosa sem cogitarem da vida após a morte, só podem terminar, essas dores acumuladas, numa grande tristeza, numa grande dor, que deságua no grande mar das dores eternas.
Flaviano olhava-me muito sério. Tentou disfarçar certo desassossego por minhas palavras tão deslocadas (do mundo) de hoje, com um leve sorriso irônico. Queria dizer algo para contestar aquelas duas alternativas teológicas, pensando tratar-se talvez de um maniqueísmo adaptado às circunstâncias do novo século.
– Mas deixemos prá lá essa conversa, não vamos mudar a mentalidade de ninguém, disse-me ao estender a mão para despedir-se.
– Está bem, muito gosto em revê-lo, até logo.
E saiu calmamente, em direção contrária.
Enquanto se afastava, Flaviano fixou em sua mente minhas últimas palavras sobre o “grande mar das dores eternas”. Elas martelavam-lhe a consciência sem saber o porquê. Era um incômodo diferente, algo desagradável de ouvir, e de pensar. Pôs-se então a meditar seu passado, como que buscando justificações e reabilitações de sua vida pregressa, para não emoldurar-se no estereótipo dos precitos. Foi o começo de uma reminiscência quase involuntária, semelhante ao indivíduo que, ao sentir uma persistente dor de estômago, vai logo imaginando um tumor maligno e seus focos secundários consumindo a pouca vida que lhe resta. E o seu pensamento acelerado, na espantosa velocidade que a consciência moral lhe concedia, viajou pelos escaninhos da memória até encontrar fatos muito distantes no tempo.
Lembrou-se então do menino travesso que foi, da inocência dos seus verdes anos, do contato com a primeira impureza, da sordície da primeira mentira, e da quebra sucessiva das resistências que a sua alma, então bem formada, podia opor contra a desordem do pecado. E percebeu, não sem certa aflição, que possuía nela alguma luz e alguma fidelidade, porque não teria perdido completamente o senso do absoluto. No fremir dessas ideias tão vivas, ouviu um pequeno timbre, a princípio meio confuso, meio apagado, e depois outro, mais outro; não teve dúvidas: o campanário estava lá, submerso, fazendo soar em seu âmago algo de sublime, de divino, de invencível. Ficou um pouco assustado, com os timbres soando progressivamente mais fortes e atroados. E continuou assim, meio atormentado, caminhando num ritmo lento, sem prestar atenção nas pessoas e nas coisas, temendo defrontar-se talvez com a grande encruzilhada de seus desejos.
(*) Doutor em Filosofia do Direito pela Universidade de Navarra, na Espanha, onde frequentou quatro pós-doutorados nas áreas da filosofia penal, ciência legislativa, filosofia e metodologia juspolítica. Procurador de Justiça e professor da UNIVALI. Autor de um best-seller de filosofia jurídica “A Verdadeira Face do Direito Alternativo” e de outros livros na temática da filosofia penal, tais como “O Conceito de Acusação” e “As razões de punir”. Também publicou obras na França e na Espanha, em revistas especializadas.