André Ghiggi Caetano da Silva (*)
Compenetrada em um jornal, os braços apoiados no balcão de pedra desbotado. Ao escutar o barulho das dobradiças, levantou a cabeça rapidamente, atônita.
– Boa noite!
– Boa noite, Sr. Boromir, tudo bem? Pensei que não chegaria mais…
Semblante de espanto. O homem esculpe um sorriso amarelo, titubeia e responde quase aos sussurros:
– Tu-do, tudo, te-nho uma, uma re-serva…
Pam! Fez o estrépito da porta de entrada. O homem vira-se para conferir.
– Desculpe, desculpe, não segurei…
– Nada! Tranquilo, esse vento sul… O vidro é grosso, não quebra não… Fez boa viagem?
– S-im, tudo bem, obrigado.
– Ótimo! Então, pode preencher esta ficha, por favor? – entregou-lhe um papel xerocado cujas letras mal apareciam – preciso do RG também, pra fazer uma cópia rapidinho… Pode ser?
As palavras foram grafadas propositadamente com garranchos; no campo da profissão, um vago funcionário público.
– Posso guardar o carro, então?
– Ah, claro, vou abrir daqui, pode colocar em qualquer lugar. Portão ali do ladinho…
Garagem igualmente umbrosa. Lâmpada diminuta, luz branca. Canos aparentes, limosos, caixas de papelão úmidas empilhadas ao lado da coluna principal. Odor forte de urina de gato em vasos de folhagens.
Tomara que seja de gato!
O homem retorna. Puxa, desajeitado, uma mala com rodas. No ombro, presas no dedo indicador, os ganchos de duas capas plásticas com reco: dois ternos, camisas, a beca de plenário. Ao entrar novamente no saguão, surpreende a recepcionista tentando ler a ficha. Sorriso de pilhéria no canto dos lábios acerejados.
– É.. Desculpe… A senhora poderia conseguir um quarto bom pra mim? Desculpe não falei antes. Digo, o mais perto possível da praia, gosto de dormir ouvindo o barulho do mar… Não é sempre que tenho esse privilégio…
– Claro! Muito fácil! Deixa eu ver aqui – coça um pouco atrás da orelha, vira-se para o painel de chaves – o 110! Primeiro andar, bem na ponta, da janela dá pra ver a praia! Um dos melhores, por sinal, talvez o melhor, pelo mesmo preço, sem problemas.
– Sério? Obrigado, muito grato!
Boromir sorriu timidamente e dirigiu-se ao elevador. Porta estreita, teve de ingressar meio atravessado. A mulher levantou o tom de voz como se quisesse alcançá-lo antes que entrasse no aparelho.
– Tenha uma ótima estadia, será um prazer ter o senhor aqui por esses dias! Bom descanso!
Elevador antigo. Certificados de manutenção ilegíveis. O barulho das engrenagens sem lubrificação, à semelhança de correntes içadas. Apreensão.
Deus do, céu! Ainda bem que é no primeiro andar!
Corredor comprido, mais de uma dezena de quartos, uma única luz tíbia. Insetos voavam no entorno parecendo se aquecer. A sensação era de que algo o espreitava de alguma nesga sombria. Escutou um barulho de goteira, mas não precisou o lugar. Miasma de madeira de canela imiscuído à maresia.
Quadros desbotados com temas marítimos. Parou em frente de uma pintura amarela feito gema. Não conseguiu distinguir bem se era um peixe ou uma baleia. Mais à frente um pior…
Será que foi o neto do dono que pintou?
Riso interno.
Maldade! Eu faria o mesmo, mas talvez colocasse apenas um, no máximo dois.
O quarto pelos menos era amplo, muito limpo, ornado com móveis antigos, anacrônicos, mas de bom gosto. A cômoda certamente pertencera à avó do proprietário, induvidosamente poupada por imperativos sentimentais. Estava enfeitada por uma toalha de rendas. Sobre esta, a tradicional bíblia dos Gideões. Uma poltrona confortável verde. TV quinze polegadas. Inútil para ele. De há muito o Youtube era a sua televisão. Ar-condicionado de caixote: o homem agradeceu por não ser verão. Banheiro? Enorme! Daria para morar ali, azulejos cor-de-rosa, arcaicos, torneiras e registros parcialmente corroídos.
Tolerável por conta da maresia, tolerável…
O vaso sanitário e o bidê de louça cor de abóbora remontavam à década de oitenta.
Nossa! Nove e meia já, ainda bem que jantei. Enfim, tomar uma ducha, ler e dormir!
A válvula do chuveiro range. A parede estremece com o brulho da água nos canos metálicos. Quantos anos têm esse hotel?
Três minutos e a água continua fria. Talvez seja o registro errado. O homem fecha o da esquerda e abre o remanescente.
Acho que é o da esquerda, sempre é…
O líquido precioso continua frio. Retorna à primeira válvula. A ducha jorra aos borbotões enquanto ele aproveita para desfazer a mala, tremendo de frio. Os ternos e a beca são dispostos no guarda-roupa. Odor de naftalina. Livros em cima do criado-mudo. Sapatos ao lado da poltrona. A água do chuveiro continua gelada.
– Oi, Dr. Boromir, algum problema?
Já pesquisou o meu nome no Google, não se contentou com a informação lacônica. Na próxima vou colocar “autônomo”. Que espertinha…
– Doutor, é?
Silêncio.
– Desculpe – risada levemente mordaz – mas a água não está esquentando…
– Ah! O doutor esperou uns cinco minutinhos?
– S-im, sim, mais que cinco, uns sete talvez, nove para ser preciso – risinho ácido com acentos de indignação.
– Ah, tá certo, é que assim, o doutor é o único hóspede do hotel, sabe, e está bem na ponta, tipo assim, a água quente demora pra chegar, mas fica tranquilo que chega, logo, logo.
– Sério? Como assim? Só eu? Sozinho nesse hotel gigante na beira da praia? Como assim?
– É a época doutor, fora da temporada… Tipo assim, hoje é domingo também.
– Nossa, que coisa, tá… Mas faz uns dez minutos que o chuveiro está aberto, acho melhor trocar de quarto.
– Ah, desculpe, não adianta muito, é que a caldeira fica bem longe, tudo a mesma coisa…
– Olha, senhora, até gosto de banho frio, mas junho, com um vento frio desse…
– Ah, então, é que…
Vinte minutos depois e dezenas talvez centenas de litros pelo ralo – o autor não pesquisou para informar com precisão – a água passa de gelada para fria.
– Oi, moça aqueceu só um pouquinho…
– Pode deixar aberta a água, doutor, o quanto for necessário, sem problema, logo vai sair fumaça…
– Tá, tá, viu, por gentileza, senhora, se alguém ligar aí pedindo se estou hospedado coisa e tal, não informa, tá bom?
– Claro, claro, nunca passamos informações sobre os hóspedes, é o nosso padrão e…
Não vou mudar de hotel agora, que se exploda.
Banho frio.
Senhor, ofereço essa pequena contrariedade pelo Tori, aquele meu amigo cachaceiro, para que ele deixe a pinga e a mulher não largue dele. Que um dia ele me pague um churrasco em troca. Com cerveja sem álcool, sem problema…
Enxuga-se com a toalha da espessura de um pano de prato. Frio arrefecido pelo pijama. Cama quente e macia. Romance sobre o peito. Dez minutos depois, sinal de alerta do WhatsApp.
– kkkk, esse vídeo é velho, camarada, mas é bom!
– Bom, né? Sempre rio pra caramba também, e aí, já chegou no hotel?
– Sim, na cama, quase dormindo.
– 10h! Cedo pra burro, que velho…
– kkkk, começar cedo amanhã, pilhas e mais pilhas…
– Sei… hotel bom, né? Fiquei ai faz uns dez anos, na virada de 2009, devem ter reformado e…
– Bem…
Relato resumido dos eventos.
– Como assim sozinho?
– Sim, só eu de hóspede, fora da temporada, a recepcionista me falou, estranho, né?
– Cara, você é louco, sai daí, vai pra outro lugar, hospedado sozinho nessa cidade cheia de bandido, você tá louco!
– Como adivinharia, meu caro? Amanhã eu vou mesmo, mais por causa do chuveiro, que absurdo…
– Cara, se eu fosse iria hoje… Tá armado?
– Sim, sempre, calma, home! Não é pra tanto.
– Calma teu %$#*. A funcionária já sabe quem você é, meu caro. Já deve ter levantado a tua ficha no oráculo Google, com certeza.
Áudio:
– A espertinha ja está me chamando de doutor…
Mais áudios:
– Boromir, sai dai, segue a dica do colega com quinze anos de estrada…
– Amanhã, amanhã…
– Se eu fosse consultava os homens da segurança Valfenda 008… E o júri quando que é?
– Quinta…
– Contra o Gothmog, né? Aquele cara, braço direito do tal chefão.. o, o…
– Saruman, esse mesmo…
– Liga pra eles e sai dai!
– Você tá louco, home, não é pra tanto. Vão me chamar de frouxo ainda por cima…
– Melhor frouxo do que imprudente, sai dai, liga lá pelo menos. Manda um zap, tem o número, né?
Cinco minutos de reflexão.
Nova mensagem de WhatsApp:
– E aí, ligou?
Não acredito. Não vou ligar, não. Exagero…
* * *
– Boa noite doutor, tudo bem? Sargento Glorfindel ao seu dispor, aconteceu alguma coisa? Tudo certo?
– Não, tudo tranquilo. Um colega mais velho pediu que eu consultasse vocês sobre uma situação aqui, sobre a minha hospedagem, acho exagerado, mas me pediram que consultasse sempre e…
– Claro, estamos ai para isso, fez o certo.
– Então, olha só, estou hospedado no…
– Bah, doutor, o senhor está em sozinho então? Sozinho aí mesmo?
– S-im… mas calma eu…
– Bah, doutor, aguenta um pouco aí, fica tranquilo, vou consultar umas fontes aqui e já te ligo, pedir um conselho ao Capitão Galadriel e já te ligo, cinco muitos e te ligo.
Não acredito. P.q.%.!
Mensagem, dez minutos depois.
– Doutor, posso te ligar?
– Cla-ro…
– Doutor, o seguinte, veja bem – tosse de disfarce – olha só, hoje não tem problema do senhor ficar aí, acho que não, sabe, mas amanhã muda para Valar, mais hotéis, mais hóspedes… O senhor fica mais pulverizado etc. Ainda mais com o júri de quinta…
– Mais trânsito, mais estresse, sem corrida na praia cedo no…
Riso comedido, contido, respeitoso, mas espontâneo.
– Verdade, verdade, doutor, mas não dá pra arriscar, né? Corre de noite antes de ir embora e armado. Tá armado, né?
– Sim, sempre, tudo bem, tudo bem, ossos do ofício…
– Olha, acionei o comando da cidade, eles vão passar de madrugada aí, vão parar aí com a viatura na frente por uns minutos… De hora em hora. Fica tranquilo.
– Opa, não precisava! Mas obrigado, não precisava não, mas obrigado, desculpe o incômodo…
– Não é incomodo, estamos aqui para isso… Boa noite para o senhor, qualquer coisa estou na escuta, só ligar… Ah! Vou compor a escolta de quinta, até breve!
– Opa! Que bom! Obrigado! Até…
O promotor põe as mãos na cabeça e puxa levemente os cabelos. Depois ri solitária e insanamente.
Aproxima-se da porta da sacada e divisa o mar quebrando em ondas colossais. A viração do Minuano assovia nas frestas corroídas pela ferrugem, suspendendo areia e ramos de restinga secos na rua de paralelepípedos. Nos prédios do entorno, silêncio. Nenhuma luz sequer.
Súbito, uma vulto branco, meio espectral, faz com que ele recue meio passo para trás: uma gaivota pousa na beira da sacada com um peixe no bico. Indubitavelmente podre: azulado, carne mole. Serena, sem perceber a sua presença, a ave passa a cear ao abrigo dos concorrentes da mesma espécie que voavam sobre os edifícios lindeiros, certamente em seu encalço.
Bicho folgado, não vai comer esse peixe podre na “minha” sacada.
Tapão na veneziana. A ave parte desajeitada, seja pelo susto, seja por ter mergulhado no vento forte sem os cálculos instintivos. O peixe cai bem no meio da varanda.
F.d%! Vai voltar aqui e fazer barulho.
Boromir abre a porta e é apanhado por uma rajada de vento que o faz estremecer. Pega o peixe pelo rabo e o atira para baixo sem olhar. Após lavar as mãos, realiza uma ligação:
– Camarada, mandaram eu sair daqui mesmo.
– Olhó! Te falei, te falei!
– Verdade, verdade… Acho meio exagerado, mas como sou novato, só obedeço.
– Exagerado, nada, tem que ouvir os p%$#-velha! Sempre ouve os p%#$-velha, pô!
Uma risada alta, misto de escape de tensão e de alegria, ecoa no quarto.
– Figura!
Mais risadas.
– Verdade, pô, fez bem em me contar. Me deve mais uma!
– Imagina você p%#$, morreria de fome, né? Ainda mais velha…
Risos efusivos de ambos os lados da ligação.
– Amor, amor – risada incontida – olha só o que o Boromir disse: …
– Concordo, Boromir, morreria de fome mesmo – ressoa uma voz feminina do outro lado.
Risadas e mais risadas.
– Mas falando sério. Como você adivinharia, né? Que azar, mas, mesmo assim, qualquer hotel é complicado, aí, na terra do Saruman, pô. Boa noite então, dorme agarrado com a pistolinha…
– Pequena mas faz estrago, meu caro…
– Boa noite, boa noite, deixa eu ver a minha série aqui com a…, qualquer coisa me liga.
– Certo, buenas!
Só para a minha cara mesmo, deveria ter ido embora. Que se dane!
O homem verifica mais uma vez a janela, fecha a cortina, pega o romance, cobre-se, verifica se a pistola está “quente”, deposita-a com cuidado no criado-mudo e lança-se, finalmente, no mundo da ficção. Seu refúgio, seu estupefaciente…
“Desci com extremo cuidado, pois os degraus estavam envoltos no breu e a única luz do local era filtrada por buracos na grossa alvenaria. Lá embaixo havia uma espécie de túnel mergulhado na escuridão, de onde exalava odor funesto e repugnante, o cheiro de terra curtida recém-virada”.
Pausa pra ajeitar o travesseiro e tirar as meias por causa do calor.
“O teto estava quebrado e em dois lugares havia degraus conduzindo às criptas, mas solo fora cavado recentemente e sua terra assentada nas grandes caixas de madeira trazidas pelos eslovacos”.
Joga o romance no chão.
Poderia ter trazido algo mais leve. Opa, que barulho foi esse? Deve ser mais um hóspede…
Um som vago à semelhança de um homem idoso em prantos ecoa no corredor.
Gole de água mineral. Liga Chopin no Espotify, retoma o romance. Mais um grito lamuriento.
Opa!
Ouvido na porta. Pistola destravada na mão. Silêncio. Espia. Nada.
Será que essa cômoda é pesada? Não, não, não é não, eu consigo. Se eu não conseguir arrastar essa porcaria não me chamo… Mas vai fazer barulho… Tinha que dar um jeito de colocar uma pano embaixo para não fazer barulho.
Cinco minutos depois: cômoda devidamente disposta com quatro meias de algodão em cada pé em frente à porta.
Se atirarem contra a porta não me acertam por causa da posição da cama. Se arrombarem, dá tempo de eu reagir tranquilo. Eu tô ficando louco, não pode ser.
Telefone toca do quarto toca.
– Boa noite, doutor, tudo certo aí em cima?
– É, sim, si-m, tu-do, tudo, e ai embaixo?
Risadinha.
– Tudo também, tudo calmo, é que escutei um barulho estranho, o senhor está precisando de algo?
– Ah! Não, não, só arredei a cômoda um pouco, para pegar uma coisa que caiu atrás, mas está tudo certo…
– Ah! Tá bom… Ela é pesada né, ai coitado! Era da bisa do seu Gollum, dono do hotel, sabe, e blá-blá-blá… Boa noite, qualquer coisa estou aqui, só ligar.
– Desculpe a pergunta, mas a senhora fica sozinha a noite inteira na portaria?
– Sim, por quê? Sim, há uns três anos, mas fica tranquilo, bem capaaaz que vai acontecer alguma coisa. Nunca aconteceu nada! Cidade tranquila, doutor! Só estudante e aposentado no inverno. Depois da meia-noite eu tranco a porta. Tem câmera por tudo, do prédio da frente dá para ver tudo também e tem gente acordada até tarde. Tenho o WhatsApp de dois moradores, um casal de velhinhos que joga baralho até a madrugada. Eu ajudei a cuidar dele quando eles estava acamado.
– Ba-cana, parabéns pelo ato.
– É! Faço bico de cuidadora de vez em quando. Ele é funcionário federal aposentado, era tri manguaçeiro, mas agora…
– Ok, ok! Tudo certo! – corta com certa rispidez.
Risadinha incontida com laivos de ironia.
– Boa noite, boa noite para a senhora…
– Boa noite, doutor, b-om, bom, bom descanso!
Voz levemente irada.
* * *
– Bom dia, doutor! Dormiu bem? Derrubou outra coisa atrás da cômoda?
A mulher tem olheiras portentosas. Resquícios evidentes de antidepressivos depositados nos cantos da boca.
– Bom dia, pois é, pois é, sou meio desastrado… – fala caminhando em direção à sala de refeição.
– Não, nããoo, capaaaz! Nada, não se incomode, viu, doutor…
– Sou um pouco distraído, sem problema…
– Nada, é o estresse certamente. Não deve ser fácil essa profissão, né? Lida com tanta gente ruim.
– Um pouco, mas com gente boa também – sorri simpaticamente.
A mulher fez cara de não ter entendido e retorna ao computador.
O café fora preparado com esmero, frutas frescas, frios de qualidade, suco de laranja-lima.
Mas que omelete bom, Dio Santo! O melhor que já comi.Graziemille, Signore!
Boromir tomou o desjejum com vista para a piscina de azulejos, suja; ciscos e mais ciscos, folhas apáticas na lâmina de água turva.
Súbito, ao lado do trampolim, surge um senhor magricela, ventre pronunciado, praticamente careca, à exceção de poucos e longos fios, ensebados, lisos, a escorrer pela nuca e pelas têmporas enrugadas. Vestia uma bermuda social com as barras em fiapos e uma camiseta branca de manga curta, parcialmente abotoada. Nos pés, grandes, ligeiramente desproporcionais, um mocassim de couro ressequido, de onde pareciam brotar pelos. Olhos esbugalhados, pele de aspecto doentio, verde-oliva.
Coitado!
O idoso abaixa-se, recolhe o peixe que o hóspede atirou a esmo pela sacada na noite anterior, cheira-o com cuidado, titubeia por um instante e o coloca em um saco.
– Meu precioso, meu hotel precioso, quem ousa atirar isso aqui, vagabundos, pilantras – disse entre os dentes cerrados.
Depois de olhar o hóspede de esguelha saiu a passos largos em direção à garagem.
– Psiu! – assoviou a recepcionista do balcão – que presenciou a cena insólita.
Olhar assustado enquanto toma o último gole de café.
– Seu Gollum… é o seu Gollum, não ligue… – sibilou a recepcionista enquanto girava o indicador em volta do ouvido direito – não faz mal a ninguém, não faz mal a ninguém…
* * *
Quarenta minutos depois, o homem aparece no saguão, terno, gravata, sapatos brilhando, com todos os seus pertences.
– Ei, ei, o senhor já vai? Como assim? Fez reserva para… dias? Nossa!
– Pois é, senhora, recebi uma aviso de última hora ontem à noite, vou ter que me deslocar à cidade vizinha, coisas do trabalho, surpresa… Vou atender duas coisas ao mesmo tempo, uma aqui, outra lá… Lá e mais importante…
– Hummm, sei, sei, que pena!
A mulher esculpe um olhar indagador:
– Ai, doutor, fala a verdade, foi por causa do chuveiro, né? Eu já falei para o seu Gollum para arrumar isso, depois se o hotel fechar por falta de clientes não adianta ficar chorando pelos cantos de noite… “Meu precioso, meu precioso”. O que salva ele é a temporada, os argentinos quebrados, sabe, que não podem ir para praias melhores e…
– Não, não, a água esquentou depois, coisas do trabalho, a nossa vida é assim, cheia de surpresas…
– Entendo, não deve ser fácil. Tá certo! Não tem ninguém pra ajudar o senhor com as coisas, que vergonha… Débito ou crédito, doutor? Teve consumo?
* * *
No mesmo dia, 14h, sala de audiência. Réu sentando no fundo, máximo 20 anos, traje holandês, algemado, cabeça baixa, rosto coberto de tatuagens esotéricas, religiosas, faccionais. Lágrimas indicando as vítimas abatidas desenhadas sob o olho de mira, o olho diretor – como diriam os atiradores – azul, sombrio, resignado como o outro. O agente do DEAP, armado feito um fuzileiro, cumprimenta o promotor com um leve abaixar da cabeça. O juiz abre um sorriso, franco, simpático, ao vê-lo entrar.
Que alívio!
– Boa tarde, doutor Gandalf! Prazer! Sou o substituto.
Aperto de mão vigoroso, olhos nos olhos.
Gente boa!
– Seja bem-vindo, Dr. Boromir, por pouco tempo, né, mas seja bem-vindo.
– Opa! Uma honra poder trabalhar com o senhor, uma lenda, desculpas antecipadas pelos eventuais e inevitáveis deslizes da inexperiência…
– Ah, que lenda o quê…
– Verdade, foi o que eu ouvi…
– Que deslizes o quê – disfarça humildemente – normal, vai dar tudo certo, com o tempo você pega as manhas… Tem que coisa que só se aprende no dia-a-dia, pegando na enxada.
– Verdade, doutor, ô! – respira fundo.
O magistrado percebe o desconforto e tenta amenizar:
– Dizem que o senhor gosta de júri?
– Pois é, pois é, um pouco, doutor.
– Quem bom! Preparado pra quinta, então?
– Nunca estamos completamente, doutor, mas vou fazer o possível…
– Acho que nesse a prova boa tá boa para a acusação, hein! Mas os jurados aqui são bons, hein! São exigentes! Se prepara! A advogada é fera também. Vai dar uma briga feia pelo jeito, dizem que o senhor é brabo… Ela é braba, hein! Eita!
– Sério? Eu brabo? Sou não! Que maldade!
Risos comedidos.
– Opa, mas bom saber, doutor, obrigado! Caso complicado, perigoso…
O magistrado assente com a cabeça enquanto abre o processo no computador. Depois diz em tom enfadonho:
– Então, doutor, neste caso, só falta ouvir essa testemunha e depois interrogamos o réu.
– Sim, sim, de defesa, né?
– Sim, deve ser abonatória, também tem passagem por tráfico, saiu faz pouco tempo… É da facção também… Não citaram ela no inquérito, não sei o que tem a dizer sobre o fato, deve ser abonatória.
– Hummm, ok, abonatória mesmo?
– É a vida! Uma senhora de sessenta anos, por aí. Traficava… O senhor vai ver o apelido dela… – o peito do magistrado treme alegremente.
Em voz baixa, quase um sussurro, o promotor fala:
– Essas abonatórias, né, Dr. Gandalf…
– Nem fale, doutor, nem fale, e o gabinete cheio de coisa importante pra fazer…
A testemunha entra mirando o chão quase junto com o advogado dativo. Um homem beirando aos quarenta, sorridente, com uma pasta de cartão cheia de anotações em folhas a4, as quais dispõe sobre a mesa à semelhança de cartas de canastra.
– Boa tarde, doutores!
– Boa tarde, doutor – quase em coro.
O réu levanta a cabeça ligeiramente como que para conferir a reação da senhora que, ao se sentar, olha em cento oitenta graus, mas fixa sobremaneira o promotor que no momento relê a denúncia, vale dizer, a petição inicial do processo-crime.
– Boa tarde!
– Boa tarde!
– Seu nome completo por favor…
– Ah, doutor, Circe Pereira do Dianho, mas me chamam, me chamam, o senhor sabe… de Garrucha-Véia, né! Ou só Garra mesmo… – a mulher responde em meio a um pigarro tabagista, atenta à reação das autoridades
O promotor morde a língua para não rir.
Sempre dá certo, sempre dá certo…
Morde mais forte, um gosto ralo de sangue brota na saliva. Tosse forte para disfarçar. Finalmente logra êxito em conter a emoção efervescente.
– Sua profissão, por favor – indaga o juiz.
A mulher desvia o olhar ao promotor e fala com um ar de triunfo:
– Olha, senhor juiz, vareia. Antes daquela prisão trabalhava em casa de família, de diarista, agora sou camareira, naquele ali da praia, não tem? Cozinheira lá também às vezes, não tem?
(*) AndréGhiggi Caetano da Silva, cadeira 12 desta Academia, promotor de Justiça, é natural de Joaçaba (SC). É autor dos romances “O Bosque da Invernada dos Fundos” (romance do ano no centenário da ACL, editora Danúbio, 2020) e “As Belas Gralhas de Anklan do Sul” (Dois Por Quatro Editora, 2022).