Ao tomar conhecimento de que o grande escritor e poeta Péricles Prade não poderia marcar presença nesta Roda de Conversa de Escritores da Academia Catarinense de Letras, em celebração dos 170 anos da Biblioteca Pública de Santa Catarina, eu pude imaginar a dor da sua ausência nesta mesa em que ele prometeu estar. Fui ao dicionário de filosofia para ver o que os filósofos disseram a respeito da ausência, esta parenta tão próxima da saudade.
Abri o livro e gentilmente fui encaminhado para a palavra Nada e lá me aguardavam Parmênides e Platão. Parmênides disse-me: ausência é o nada e o nada é o não ser. E Platão falou: o não ser é negação ou alteridade. Alteridade é ser outro, colocar-se ou constituir-se como outro. Fechei o dicionário com a certeza de Péricles Prade paixão e morte encarnado em sua própria obra, como que a redimir no mundo a prolixidade do real, como diria Borges.
Este não ser de Péricles, na alteridade construída que é a sua obra, chegará aos 170 anos, como esta biblioteca; ao centenário como esta Academia Catarinense de Letras. Imortal e completo num mundo sempre incompleto e insensível. O crítico literário Luiz e Silva disse que a obra de Péricles é em suma elaboração estética de um mundo paralelo e artístico, que nos liberta das limitações do real. Péricles, diz ele, recorre à abstração como um recurso a exprimir a sua não aceitação do mundo tal e qual.
Maiakovski em seu poema Lilitchka (Em lugar de uma carta) é um exemplo; ele retira da vulgaridade do real a dor da separação, para reescrever o final do idílio e sintetizá-lo numa carícia de relva e de folhas: deixa-me ao menos arrelvar numa última carícia o teu passo que se apressa. Permitam-nos, senhoras e senhores, que os confrades aqui presentes, atônitos e mais uma vez lhe digam adeus.
Partiu aquele jovem que veio de Rio dos Cedros, como no rio de Heráclito; para chegar enfim, à alta praia em que o mar é o tempo, como diz Fernando Pessoa. E do velório, os versos de García Lorca:
Todos los ojos
Estaban abiertos
Frente a la soledad
Despintada por el llanto.
Los verdes ciprestes
Guardaban su alma
Arrugada por el viento,
Y las palavras como gadañas
Segaban almas de flores.
Ali estava ele. As virtudes voltadas para o céu, e os seus raros defeitos, contritos e dóceis portavam braçadas de flores no alvo lençol de sua coerência viril. Ali estavam comovidas como olhos de pranto aquelas flores de o levarem, como lenços brancos de abano a secarem no caminho. Ali estava ele, como que escrito naquelas tábuas de madeira nobre, conciso, sobrenatural, fechadas as contas. Em uma mesa lateral estavam seus livros, como aves marinhas, a aguardar-lhe o voo em parceria na larga praia do tempo.
Ó mar de tempo e silêncio! Silêncio das bibliotecas e dos templos! As suas obras como estrelas de tempo e lonjura – a nadarem como peixes, de lucidez e de ternura! Olhos duplos de ver ao mesmo tempo o passado e o devir. De clarear horizontes aos mil olhos das gerações futuras. E quando voltou o silêncio substancial na Casa José Boiteux, disse Cruz e Sousa, lá do seu quadro de vidro trincado:
Espiritualizai nos Astros louros,
Do sol entre os clarões imorredouros
Toda esta dor que minh’alma clama…
Meu aplauso.