Anos sessenta, tempo de jovem guarda e música popular brasileira de qualidade. Jairo, motorista de carteira nova, consegue emprego no ponto de táxis do cemitério das Três Pontes, bairro de Itacorubi, na ilha dos casos e ocasos raros. O local é bom, de inúmeras corridas, pois a morte sempre se revela dos humanos solidária companheira, deixando de vez em quando alguns com as fulgurantes esperanças eternamente perdidas e outros libertos para sempre de desditosos desalentos.
Roberto Rodrigues de Menezes (*)
Consegue boas corridas, o que lhe permite começar a produtiva vida com algum dinheiro. Sabemos que o metal vil se revela o grande motor da vida, embora se faça necessário também na morte. Pena que o rapaz não tenha um carro seu, pois a parte do leão costuma ir para o dono.
Numa sexta-feira quente de chuva fina, que cai modorrenta avisando a todos os ilhéus ter vindo para permanecer por bom tempo, Jairo é chamado por uma moça para mais uma corrida. Nova, esbelta, uns trinta anos aparentes, pede que a leve até o Balneário do Estreito. O rapaz conhece bem o local, pois lá morou. Abre a porta do veículo com solicitude, enquanto ela entra e se ajeita no banco de trás. Acha-a pálida, triste. Ela parece estar longe, olhos distantes que fitam o horizonte pequeno e chuvoso do dia.
Olha-a pelo retrovisor. Tenta dizer algo, lamentar o mau tempo, mas ela responde de forma monossilábica. Somente consegue saber que a estranha se chama Helena e que fora acompanhar o velório de uma amiga. Agora volta para casa. Os cabelos lisos e negros esvoaçam ao vento. Recebe no rosto pingos de chuva fina que adentra pela janela entreaberta, mas não se importa. O rapaz tenta fazer ver a ela que pode pegar um resfriado.
― Não se incomode – diz ela num sopro.
Ele se cala de vez e presta atenção na estrada, enquanto a moça continua com seu olhar indefinido e longínquo, a fitar a chuva e a cerração ao longe. Atravessam a magnífica ponte do Hercílio, na direção do Estreito. Ao chegarem perto do cine Glória, ela pede que o rapaz entre na segunda rua à direita depois do cinema.
O cine é o ponto de encontro preferido das meninas casadoiras e dos jovens de calças boca de sino e longas melenas, que gravitam em torno daquela paradisíaca região. Quase em frente, no bar Margareth, pode-se tomar uma cerveja gelada ou mesmo uma coca-cola com salgadinhos.
Jairo sai da rua, bem próximo do mar do Balneário, e entra com seu táxi novamente à direita. Naquelas paragens as ruas têm nomes de grandes vultos da literatura brasileira, como Castro Alves, Casimiro de Abreu, Gonçalves Dias e Raimundo Correia. Da ruazinha pode-se ver o mar de vento nordeste da baía norte. A praia está vazia, as vagas revoltas e cheias de espuma a espargir a areia numa sequência rítmica. Bem perto, mar a dentro, três pedras irmãs apontam para o alto, ancoradouro de jovens afoitos que delas se jogam para um mergulho teatral, a deixar cheias de espanto e admiração as meninas na praia. Isso, porém, somente acontece no verão ou quando o sol assume o reinado da chuva, afugentando o frio.
A rua é abraçada à praia, tanto que de um lado algumas casinhas se enfileiram, e do outro a areia já começa, após um anteparo raso de vegetação.
Ela pede que o motorista pare logo em seguida, em frente a uma casa pequena, de estilo português, janelas de madeira maciça e portas de tábuas. Paredes grossas, caiadas de branco, telhado de calhas nativas, tudo lembrando as construções açorianas que povoam a ilha e todo o litoral.
Helena entra, caminhando sem pressa. Antes, solicita ao motorista que espere por ela, pois não vai demorar muito. Jairo se acomoda no banco do carro e acende um cigarro. A baía norte, coberta de chuva e neblina, deixa o mar acinzentado e sujo, cor de chumbo enegrecido. Somente se divisa ao longe o contorno indeciso das construções da ilha.
Ela demora demais e o rapaz sai do táxi. A chuva deu uma trégua e ele pode passear ao longo da rua vizinha da praia. Vai até a esquina e retorna. A moça ainda está na casa, o que faz com que ele comece a ficar impaciente. Aproxima-se do portão de madeira, ripas verticais em mau estado, cuja cor fora branca e hoje revela as marcas do tempo. Abre-o e entra no terreno.
A porta da frente está fechada, o que o faz caminhar até os fundos. No quintal, goiabeiras disputam espaço com pequenos pés de pitangas. Junto ao muro de trás, um conjunto de bananeiras espraia o verde e ameniza a soturna cor bolorenta de parede sem tinta. Ele se aproxima da porta da cozinha, ao lado de um tanque, e bate palmas. Após um pequeno espaço de tempo, que parecia interminável, aparece uma senhora já idosa.
Jairo a cumprimenta e pergunta pela moça. Não pode esperar tanto, pois precisa voltar ao ponto. A mulher pede que ele entre, mesmo por ali. Conduz o rapaz até a sala, passando antes por uma cozinha envelhecida pela fumaça do fogão a lenha. Tomam um corredor que dá para o quarto de um lado e o banheiro simples do outro. Mais adiante, se avista a sala pequena de duas poltronas escuras, mesinha de centro apodrecida pela presença de cupins, onde uma melancia de porcelana quase ofusca a vista com seu verde-vermelho forte.
Ela aponta para um quadro na parede.
― Foi esta a moça que o senhor trouxe? – Pergunta a mulher com ar resignado, quase neutro.
― Sim, ela mesma. Só que no quadro parece mais nova.
A moldura escura e simples, de vidro manchado, fotografia em preto e branco que foi depois pintada e colorida, costume dos menos abonados da época, combina com a parede quase cinza, que um dia foi branca.
― É minha caçula Helena – geme a velha com os olhos molhados. ― Morreu afogada na praia em frente vai fazer dez anos e é a terceira vez que ela vem. Só que não aparece nem me diz nada. Ah, se eu a visse, como o senhor a viu! … Espere um pouco, que vou pegar o dinheiro.
O rapaz ouve tudo apalermado e corre para a rua, pálido de espanto, sem querer saber da paga. Atravessa o portão, como se todos os fantasmas do mundo lhe estivessem atrás. Toma a rua palpitando de medo, pois não quer acreditar no que ouvira. Entra no carro, mas antes examina os bancos, pois ela pode estar lá, querendo voltar para o lugar onde mora. Após a inspeção retorna ao ponto no Itacorubi, apavorado, os olhos no retrovisor, com medo de rever a moça. Sempre fora racionalista, darwinista mesmo, mas sabia que no íntimo nunca poderia explicar o ocorrido. Fizera a corrida para um ser das sombras, que voltava a casa e à mãe, talvez para matar a saudade.
No momento em que estaciona no ponto e sai do carro, vê novamente Helena no banco de trás. Ela lhe lança um sorriso tímido, abre a porta e sai, rumando para a entrada do campo santo. Desta vez ele não foge. Quedou-se pasmado, branco e imóvel, como uma estátua de cera, quase à beira de um enfarte. Depois de longo tempo se refaz, pois os colegas batem nele aos gritos, para trazê-lo de volta à terra e à vida.
Naquela semana, Jairo pediu as contas ao proprietário do táxi. No final do ano, prestou concurso para a Escola de Oficiais da Polícia Militar e foi aprovado. Taxista nunca mais seria, disso tinha certeza.
(*) Roberto Rodrigues de Menezes é coronel reformado da Polícia Militar catarinense. Formado nos cursos militares, com ênfase para o Curso Superior de Polícia e Curso de Comunicação Social do Exército, na área civil tem formação em Pedagogia. Tem dezenove livros publicados (poesia, contos, narrativas, história militar e biografia) e participação em antologias e coletâneas diversas.