Em crônica inédita, escrita para este portal, o professor e escritor catarinense Deonísio da Silva destaca precioso viés de um sermão já famoso em nossas letras
Deonísio da Silva (*)
No Século XVII, domingo ainda era “dominga”, feminino, tal como documentado no Sermão de Santo Antônio, pregado no Maranhão pelo padre Antônio Vieira em 1657.
Não era o Domingão do Faustão, era do Vieirão, e proporcionalmente tinha mais audiência. Ia ouvi-lo e vê-lo a cidade inteira.
Uma das leituras do Evangelho daquele domingo era o episódio da mulher que tem dez dracmas, perde uma e varre a casa toda até encontrá-la. Encontrando-a, “sai à rua com grande alvoroço, chama as amigas e vizinhas para que lhe deem o parabém da sua boa ventura”.
A cidade de São Luís em festa o padre Vieira compara o Céu quando um pecador é convertido. Tal como dracma perdida que a mulher achou, assim seria o pecador arrependido que, perdido, se reencontrasse.
Vejam um dos muitos vieses: que mina de ouro para estudo do português! Constatamos hoje que dominga mudou de gênero, passando a masculino, e parabém, no singular, foi substituído por parabéns, usado agora sempre no plural. Também era necessário saber por que a dracma, moeda grega, estava no comércio da Palestina ocupada por Roma etc.
Hoje, você vai à igreja e o que acontece? Há cultura nos sermões ou homilias? Diga aí você que vai às igrejas. Você sai melhor do que entrou? Aprende algo? Perguntar não ofende. Claro que cultura é palavra estratégica, mas não tão vaga a ponto de incluir a ausência habitual de conteúdo de qualidade nessas práticas.
Não é mais a pandemia que afasta os fiéis. Como não é a pandemia que afasta os alunos. Nem os ouvintes e telespectadores. E muito menos os leitores. Havendo bom tema e quem fale ou escreva bem sobre ele, virá a seu tempo o público.
Vieira começa e termina seu Sermão, de cerca de quarenta laudas, em latim. Divide-o em dez partes. Hoje, se um padre ou professor fizer isso, dorme quem estiver ouvindo ou vendo.
O que precisa mudar? Quase tudo, mas não a qualidade do conteúdo. Só a didática, a sala, as luzes, a câmera. E, no caso de quem escreve, o estilo, pois jornais e revistas já migraram para o digital quase todos. O maior jornal impresso no Brasil, atualmente com 215 milhões de habitantes, tem tiragem média de 75.000 exemplares. Estão nesta faixa a Folha de S. Paulo, O Estadão e o Globo.
Um bom profissional será, porém, o avanço mais valioso, como o foi Vieira no Século XVII. E quais são os Vieiras do texto atualmente? Vieira não foi um talento solitário do período colonial. Foi apenas o mais importante da época e referência solar na arte de falar e de escrever, nosso duplo ofício desde há algumas décadas.
(*) professor federal aposentado e escritor, seu livro mais recente é “Balada por Anita Garibaldi & Outras Histórias Catarinautas” (www.almedina.com.br).