Apresentamos mais um autor catarinense de raro talento, que escreve com muita propriedade e tem bons recursos de estilo.

É muito conhecido de alguns arquipélagos literários, como acontece com tantos bons autores, e merece que saibamos o que produz: crônicas que merecem ser degustadas.

Donald Malschitzky nasceu em São Bento do Sul, no norte do estado, onde cresceu e se apaixonou pela literatura. Hoje, mora em Barra Velha, no litoral. É colunista do jornal “A Gazeta”, de São Bento do Sul e colaborador da revista “Francisca”, de Joinville.

Procure saber mais dele. Vale a pena. É um bom narrador.

Deonísio da Silva, coordenador deste portal.

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A linguagem dos cheiros e o que fica

Das casas de minhas avós, baús e baús de emoções provocadas pelo olfato e pela atmosfera: a luz fraca na noite no curral mal iluminava as vacas com seus odores de couro e pasto, misturado com o cheiro da ração cortada e de leite morno espirrando para o balde, das batatas doces cortadas para o gado e que comíamos com sal grosso também destinado às vacas. Éramos primitivos.

Cheiro de mistério entre os tecidos deixados no sótão com suas histórias. A acidez exalada do requeijão deixado escorrer, embrulhado em pano e pendurado e a mistura com o respirar de assepsia dos panos brancos que protegiam a manteiga me levaram a, um dia, fazer da cozinha amiga inseparável.

Na outra vó, a fragrância da palha de milho, do mate cortado, da fumaça da lamparina, da banha de porco na fritura pavimentavam os caminhos de volta para um tempo já evaporado da cidade.

Nas duas, a aventura no cheiro do pasto, do taquaral, dos capões de mato, da sapecada de pinhão, do barro úmido.

Da infância, ainda, os odores de magia no cheiro de pinheiro de Natal, e nele, o que ficava da vela acesa e depois de apagada, dos sonhos que a mãe fazia, da capa de chuva quando tirada da embalagem, do primeiro tênis, do livro novo quando começavam as aulas e da cola usada para colar as capas dos cadernos, do lápis ao ser apontado, do metal da primeira caneta tinteiro e de sua tinta, da primeira Conga com bico emborrachado.

Persistem os cheiros de deslumbramento da descoberta diária do mundo na mistura de odores de café, óleo e cobertor impregnado de maresia nos tempos de mar de subsistência, do que fica na pedra molhada pela onda, da areia da praia pela manhã, da corredeira, do rio manso na campina ou imerso na mata, do vento sul que traz frio, da geada a secar as narinas, da chuva nos pastos, da grama recém-cortada, do tempero amassado na mão, do livro velho quando aberto, da gaveta de lembranças.

Houve um tempo em que cavalgava ou, melhor, andava a cavalo, pois nem trote conseguia controlar, e o cheiro de cavalo era sinônimo daquela paz que se sente ao esquecer os problemas, assim como o de comida sendo preparada é o abraço olfativo.

E há os odores de doce responsabilidade dos filhos quando nenês e de preocupação quando adolescentes, diferentes daquele emanado dos netos, que misturam alívio e apreensão.

De todos, o inexplicável, que vem de você, quando você volta.

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Um prego na parede e coisas assim

Às vezes basta um prego na parede para transformar a sala, o quarto, a cozinha. Um prego que suportará um quadro ou aquela foto antiga achada numa arrumação daquelas que se faz por decisão de separar o que realmente importa e se livrar de tudo que não faz e nem fará falta, mas que acaba sendo um garimpo de lembranças que hibernam nos escaninhos. A lembrança pendurada no prego vira assunto, provoca confissões, aduba a ternura.

Trocar algum móvel de lugar para melhorar o espaço e, quando se vê, chama para o aconchego, leva os olhos a mirarem os outros olhos e redescobrir o que se ocultava por trás dos óculos, agora necessários.

Uma flor de bom dia ou de boa tarde ou de ser apenas flor, mesmo que em forma de fotografia, perfuma espaços e ameniza os obstáculos que, queiramos ou não, esperam, aparentes ou escondidos, por nossos passos distraídos. Quando em vaso, rebate nossos olhares e deseja paz.

“Gosto de você”, escrito no pó repousado no tampo da estante escura pode valer mais do que o poema elaborado com precisão e prenhe de sentimento, mas não tão divertido e inesperado.

Esquecido no sofá, fora do lugar e atrapalhando a ordem que impera na casa, o marca páginas atiça a curiosidade e, aberto o livro, dele saem as borboletas de Quintana que voam por onde querem, sem saberem que lá não seria o lugar delas, e espalham cores feito paletas de artistas loucos.

Um ramo de salsa em cima da salada de maionese não mudará o gosto do prato, a não ser que seja comido junto, já um de tomilho mergulhado no molho ou o alecrim repousando na carne assada não serão apenas decoração – ou do coração –, pois deixarão suas assinaturas nos odores e nas papilas.

Quem sabe, não sejam necessários presentes sofisticados e caros para o Dia dos Namorados. Daria para começar com um prego na parede.