A poeta Teca Mascarenhas, titular da Cadeira 25, foi designada pela Diretora da Academia Catarinense de Letras, Lélia Pereira Nunes, ao cargo de Diretora de Comunicação Digital da ACL e enfatiza convite aos colegas, Acadêmicas e Acadêmicos, para divulgar aqui neste portal os seus textos enviando-os a um dos e-mails:

teca.mascarenhas@academiacatarinense.org.br ou editora@doisporquatro.com

Para estrear o novo ciclo, Teca Mascarenhas publica seu poema “Meiembipe dos meus sonhares, Desterro dos meus cantares, Floripa dos meus amores — uma epopeia catarina”, o qual integra a recém-lançada coletânea da ACL denominada Nas asas do martim-pescador — tributo aos 350 anos de Florianópolis. Leia a seguir:

MEIMBIPE DOS MEUS SONHARES,

DESTERRO DOS MEUS CANTARES,

FLORIPA DOS MEUS AMORES — uma epopeia catarina.

1. houve um tempo em que era outro o fluxo das coisas

quando a natureza se oferecia pródiga e benfazeja

os bichos se irmanavam na partilha da água e das sombras

enquanto o canto dos pássaros suavizava o silêncio

as forças divinas acrisolavam o curso das estrelas

e o futuro insondável das almas

2. o fluir oceânico resfriou a lava do ventre da terra

e milhões de anos engendraram maciços rochosos

inexaurível o vento sul recortou a longeva costa

fazendo eclodir no relevo inconstante da pele

planícies e lagoas

bacias e matas

rios e mangues

dunas e restingas

montanhas e ilhotas e cavernas

dezenas de praias oníricas

e deram à luz essa suntuosa paisagem insular

3. eis que vestígios humanos de passos milenares

esconderam-se em suas entranhas arenosas

santuários erigidos pelos Povos do Sambaqui

— os primogênitos humanos da imaculada orla —

populações litorâneas de pescadores e coletores

artesãos de objetos utilitários e artísticos poliram a pedra

criaram zoólitos e ornamentos de fibras e conchas

forjaram facas e arpões e machados

imprimiram pegadas de cultura sedentária e organizada

e nos legaram marcos históricos chamados sambaquis:

acervo de conchas de seres marinhos artefatos ósseos

e lítios ossadas de peixes e mamíferos e pássaros

altos e amplos monumentos

— agora destruídos ou danificados ou mal preservados

cemitério de crianças mulheres e homens

sagrado relicário dos mortos

onde vigia o fogo-fátuo ou boitatá

4. no tempo em que as águas ainda eram mansas

nos idos dos anos 1300

oriundos da imensa Nação Tupi-guarani

chegaram os ameríndios Carijós

espalharam-se junto ao quebrar das ondas

em diversos agrupamentos de tribos e aldeias

sociedades de pescadores sedentários

povoaram a ilha que chamaram Meiembipe:

montanha ao longo do mar

aqui elaboraram cosmologia e cosmovisão

e desenvolveram civilização estrutural

em íntima harmonia com fauna e flora calorosas

artífices da arte cerâmica produziram cultura

plantaram e colheram os frutos da terra virgem

veneraram o espírito que se oculta em cada palavra

em cada força do universo e em todo ser vivo

‘difusores da tradição do sol da lua e do sonho’

sulcaram para sempre a face da história catarinense

5. três séculos até o desflorar do éden tupiniquim

com a chegada da primeira comitiva invasora

e o início das relações de escambo e aprendizado

o bandeirante Dias Velho e família

seguido de religiosos da Companhia de Jesus

e centenas de índios aculturados

fundou e impulsionou a freguesia

que denominou Nossa Senhora do Desterro

e em seu louvor erigiu pequena igreja

locus do culto a Deus e das profissões de fé

todavia os hospitaleiros indígenas do povo Carijó

afamado como o melhor gentio da costa

amiúde foram impiedosamente dizimados

— malgrado a luta vã dos missionários jesuítas —

renderam-se à avidez dos corsários por riquezas

pereceram às doenças europeias

aos violentos aprisionamentos portugueses

às vendas como escravos nos Estados emergentes

até se quebrantarem feito cativos nos engenhos

e sucumbirem à infame sina de escravizados em terra própria

enfim cruentas batalhas entre ilhéus e piratas

resultaram na morte trágica do bandeirante desbravador

e o posterior retorno dos familiares e subsistentes

relegou a ilha a um triste cenário de abandono

6. em meados dos anos 1700 a Coroa Portuguesa

criou a Capitania Subalterna de Santa Catarina e

planos de aplacar as mazelas do Arquipélago dos Açores

e garantir o projeto de expansão português

promoveu a imigração de cinco mil acorianos-portugueses

os quais deveriam cumprir os critérios Régios:

casais em idade reprodutiva e seguidores da religião católica

— oriundas dos Acores desembarcaram no Brasil

as almas que colonizariam a ilha e o litoral catarinense

preencheriam os vazios demográficos

e caracterizariam a identidade étnica da região

porém no novo horizonte viram descumprida

a promessa de distribuição equitativa de terras e bens

dar origem às diferenças legitimadoras de poder

e às desigualdades econômicas e sociais emergentes

de um lado proprietários comerciantes usurários

notáveis letrados

do outro agricultores pescadores artesãos incautos

a diáspora açoriana coincidiu com o ciclo da baleia

e impulsionou os homens para o mar

que aperfeiçoaram a pesca e técnicas de conservação

também se dedicaram à agricultura de subsistência

na organização da produção e do consumo

a vida açoriana envolvia toda a família

e imprimia feições particulares ao original ambiente

com a açorianidade fincando suas raízes

na demarcação simbólica do território

e na reelaboração cultural das tradições

festas e ritos são manifestos nas celebrações

litúrgicas da Igreja Católica Romana: Advento Natal

Quaresma Epifania dos Reis Páscoa Festa do Divino Pentecostes

nas práticas devocionais sincréticas do catolicismo popular:

folias procissões romarias festas de santos padroeiros rezas

ternos de reis novenas ritos de pagamento de promessas

nos eventos socioculturais: língua e falares poesias modas literárias

romanceiros cancioneiros danças culinárias artesanatos festas da tainha

farra do boi cultura da saudade boi de mamão usos e costumes

destarte a cosmologia da Ilha da magia se configura

simbolizada pelo Divino o Boi e a Tainha

e transpassa de seres fantásticos o universo mítico do ilhéu

bruxas lobisomens borboletas maus-olhados boitatás

curupiras fantasmas bem-querências vampiros horas mortas

hoje ativistas descendentes animam seu orgulho

valorizam a identidade cultural translocalizada

e preservam o patrimônio afetivo da alma açoriana

enquanto a ilha abraça novos imigrantes transnacionais

e expande seu repertório multiculturalista

7. a Região Sul foi coberta de sangue de 1893 a 1895

com a Guerra Civil chamada Revolução Federalista

a dividir a jovem República pelos rumos do poder

na fratricida luta armada entre dois grupos opostos

presidida então pelo Marechal Floriano Peixoto

o qual passou aos anais do Brasil como Marechal de Ferro

rubrica da atuação autoritária e truculenta na revolta

que culminou com a derrota do contingente dissidente

de um lado os Republicanos — os pica-paus, pela manutenção

do outro os Federalistas — os maragatos, pela descentralização

cujos confrontos sangrentos dos filhos da mesma pátria-mãe

resultaram na morte de mais de dez mil combatentes

imprimiram marcas indeléveis de violência e crueldade

nas memórias e nos corações dos soldados remanescentes

dos descendentes de todos os revoltosos

e da devastada população sulina

como uma página inescurecível da história nacional

os Federalistas transformaram Nossa Senhora do Desterro

em Governo Provisório desanexado do central

e pela sua posição geográfica estratégica

a Revolução teve o mar e os rios como protagonistas

das batalhas atrozes que colocaram irmãos contra irmãos

e aniquilaram os ideais e as vidas dos militantes

na sua saga persecutória o Marechal de Ferro ordenou

o encarceramento de militares autoridades civis e lideranças locais

nos calabouços da Fortaleza de Santa Cruz de Anhatomirim

a pequena ilha do diabo do povo Tupi

onde foi consumado o massacre de 185 almas desesperadas

sumária e cruelmente enforcadas ou fuziladas

no palco trágico da Chacina de Anhatomirim

quase duas décadas se passaram até que os despojos mortais

fossem encontrados e recebessem um desenlace digno

embora somente alguns desditados puderam ser identificados:

Capitão Luiz Inácio Domingues, Marechal Manuel de Almeida Lobo d’Eça (Barão do Batovi), Coronel Luiz Gomes Caldeira de Andrada, Desembargador Francisco Antonio Vieira Caldas, Juiz de Direito Joaquim Lopes de Oliveira, Manoel Joaquim Telles, Romualdo de Carvalho Barros e Elesbão Pinto da Luz.

o fim da Guerra Civil reduziu grande parte da população

a tão dramática condição de miséria e pavor que a sujeitou

a desprezar Nossa Senhora do Desterro e entronar o Marechal de Ferro

alterar o nome da Capital para Cidade de Floriano

e relegar ao apagamento muitos de nossos mártires

cujos fantasmas ainda assombram a pequena ilha do diabo

8. a Capital de Santa Catarina celebra 350 anos neste 2023

a enigmática Ilha da Magia

a Floripa dos meus amores

quando nasceu vaticinaram os oráculos:

serás “um pedacinho de terra perdido no mar”

reinarás majestosa aureolada pelo oceano infinito

e tua beleza dominará paradisíaca

guarapuvus douradas reluzirão nas tuas matas

Laelias purpuratas florescerão nas tuas grutas

Martins-pescadores-verdes adejarão sobre tuas águas

ondas sonoras entoarão cantos nas areias das tuas praias

fauna e flora aqui conviverão em harmonia celestial

— mas teu destino insular te reduzirá a anônima solidão

teu reino será inacessível e despojado de almas

e nenhum chamamento humano poderá te alcançar

entretanto as Moiras reputaram injusta a profecia

e o fadário da ilha absolutamente alteraram

a se cumprir diverso conforme o desejo das deusas

decretada a morte do isolamento

atravessou o percurso intangível do tempo

— atraídos pelo cheiro do mar vieram povos de ultralonjuras

redes transnacionais de imigrantes

redesenharam as paisagens de infância guardadas nas almas

e na ilha perfilharam criaram raízes alçaram voos

sonharam e concretizaram sonhos de prosperidade

ainda que nem sempre suaves fossem os caminhos

ainda que muitas vezes atrozes tenham sido as lutas

ainda que dores tornassem mais salgada a aragem do mar

o tempo sempre pode ser arauto de esperança

e anunciar melhores dias de fraternidade para a humanidade

como um regresso à fonte do poema

a vocação acolhedora da Floripa dos meus amores

— onde viveu minha mãe e nasceram meus filhos —

inventa modos contemporâneos de sociabilidade

fundadores de uma universalidade indeclinável

para acatar os deslocamentos humanos pluridirecionais

e elaborar incansavelmente sua memória polifônica

na pulsão dialética da história catarina

aqui na aclamada 10a Ilha dos Açores

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Teca Mascarenhas. Cadeira 25. Academia Catarinense de Letras

Revisão: Sandra Novaes