Este portal publica textos curtos de autores da Academia Catarinense de Letras. Hoje trazemos o viés da etimologia, área de atuação marcante de Deonísio da Silva (*), que sob tal rubrica assinou coluna semanal por 25 anos ininterruptos na revista CARAS. (1993 a 2018).

O artigo de hoje trata de periguete, palavra nascida na Bahia e que se espalhou por todo o Brasil.

HISTÓRIA DA PALAVRA PERIGUETE

Faz alguns anos uma nova palavra entrou para a língua portuguesa. É periguete. E desta vez não veio de um dos berços habituais mais férteis, a cidade do Rio de Janeiro, especialmente suas praias e bairros, em particular Ipanema.

Das metrópoles que mais influenciam a vida nacional, o Rio de Janeiro é o mais pródigo em fornecer novas palavras e expressões, desde os tempos em que, no alvorecer do século XIX, o rei Dom João VI fixou aqui as cortes portuguesas e sua numerosa comitiva. Desde o século XVIII a capital tinha sido transferida de Salvador para o Rio.

No século seguinte, a transferência da capital para Brasília não tirou do Rio essa supremacia cultural, que hoje divide com São Paulo, não com Brasília.

Os cariocas, usualmente irreverentes e bem-humorados, encarregam-se de bater os tambores da pátria, fazendo de sua cidade e de seus bairros as principais caixas de ressonância do Brasil.

Nascidas na praia e depois levadas às novelas da televisão, especialmente à novela das oito, as novas palavras e expressões se espalham por todo o território nacional. A principal disseminadora é a TV Globo, como antes era a Rádio Nacional.

Antes de vir para o Rio, de onde se alastrou para todos os Estados, periguete surgiu nos bairros de Salvador, na Bahia, que, por ser cidade eminentemente turística, sofre grande influência do inglês.

Periguete formou-se da adaptação do português peri(go) e do inglês girl. Peri(gosa) girl, depois peri girl e por fim periguete.

Para as mulheres, periguete é aquela piranha que olha para seu marido ou namorado, pronta a desfrutá-lo. E ela só o quer por um dia!

Para os homens, a ancestral da periguete, moça bonita, de roupas, gestos e modos sensuais, foi antecipada nos versos de Chico Buarque, gravados também por Gal Costa, na voz de quem ficava mais convincente a transformação da mulher, que deixava de ser coisa para coisificar o homem: “Se acaso me quiseres,/ Sou dessas mulheres/ Que só dizem sim/ Por uma coisa à toa/ Uma noitada boa/ Um cinema ou botequim/ E, se tiveres renda/ Aceito uma prenda,/ Qualquer coisa assim.(…) Mas na manhã seguinte/ Não conta até vinte:/ Te afasta de mim,/ Pois já não vales nada,/ És página virada,/ Descartada do meu folhetim.”

As Frenéticas deram outro colorido aos versos de Chico Buarque: “Eu sei que eu sou/ Bonita e gostosa/ E sei que você/ Me olha e me quer/ Eu sou uma fera/ De pele macia/ Cuidado, garoto!/ Eu sou perigosa…”

Ao contrário dos homens, a mulher, talvez por instinto materno, nela inarredável, quer proteger a vítima e reitera os avisos: “Eu tenho um veneno/ No doce da boca/ Eu tenho um demônio / Guardado no peito/ Eu tenho uma faca/ No brilho dos olhos/ Eu tenho uma louca/ Dentro de mim…”

A perigosa tornou-se periguete. As palavras, como árvores e dentes, têm raízes. Algumas são muito profundas e é preciso pesquisar para encontrá-las. Desde meus verdes anos aplico-me a esse trabalho encantador!

(*) Deonisio da Silva, professor federal aposentado e escritor, é autor de “Avante, soldados: para trás” e “De onde vêm as palavras”, seus livros de referência.

Capa de “single” do grupo As Frenéticas, de 1977