Aquela casa tem segredos. – Qual casa não tem? Entre paredes, procriam-se segredos obscuros, nem sempre compreensíveis.

David Gonçalves (*)

Se todos revelassem os seus segredos, o mundo seria perfeito manicômio.

– Estou curioso. Conte, então.

Olhavam para uma casa antiga, construída na época áurea do café, o ouro verde. Para a época, ela, num estilo colonial, da época de Dom Pedro, era a principal atração de Quadrínculo. Cesário, o proprietário, era abonado fazendeiro, com milhões de pés de café. Casado, pai de sete filhos.

– Parece abandonada. Triste espetáculo. Casas antigas em ruínas me deprimem.

Certo dia, recebeu uma carta de um antigo meeiro. Pedia-lhe para ser padrinho de sua filha de 3 aninhos. A mãe falecera e ele não tinha condições de criá-la. Condoído, ele e a esposa receberam-na. Monoelito, o meeiro, chorou ao se despedir da filha. Nunca mais se soube de seu paradeiro.

– Separar-se de uma filha não é fácil. Eu não teria coragem. Exige coração frio, sangue gelado.

Enfim, Joana foi criada com o mesmo zelo. Nada lhe faltou. O homem tinha posses. Os filhos estudaram em bons colégios e, um a um, cursaram universidades em Curitiba e em São Paulo. Engenheiros, médicos, advogados.

– E a menina? Teve os mesmos privilégios?

Sim, mas quis ser professora. Tinha olhares doces, bondosos e espiava e percebia o mundo com solicitude. Nunca ficou distante da casa dos pais adotivos. Visitava-os semanalmente.

– Ah, nobre profissão. Tão desvalorizada atualmente.

Quando Cesário estava com seus cinquenta anos, sua esposa descobriu-se doente, um câncer maligno no útero. Nenhum médico deu jeito. Em três meses veio a falecer. Foi um enterro comovente. Era muito religiosa e bondosa. Ao encomendar a alma, o pároco chorou. A população derreteu-se.

– Pessoas assim fazem falta ao mundo…

Aquela casa nunca mais foi alegre. Janelas e portas sempre fechadas. O fazendeiro entrou em depressão profunda.

– Os filhos não vinham visitá-lo?

Dispersos no mundo e ricos, ocupavam-se com os seus negócios. Você sabe: a ambição é saco sem fundos. É igual o carvão: não faz labaredas mas suja as mãos e a alma. Quando é demais, é doença.

– Não condeno os ambiciosos. Quem não sente a ânsia de ser mais, não chegará a ser nada.

Joana, a adotiva, não herdou esta fome por riquezas. Muito menos por joias. Uma jovem muito bonita. Cabelos negros sobre os ombros, olhos de jabuticaba. Os irmãos eram branquelos, olhos castanhos. Mas ela era morena cor de canela. Os moços derretiam-se ao vê-la. Mulher para virar a cabeça dos homens.

Na rua, despertava atenção e inveja.

– Choviam pretendentes.

Mas ela não acolhia os elogios e declarações.

– Por orgulho, talvez.

Nada disso. Era espontânea. Uma simplicidade bela.

– Inacreditável…

Vinha visitar o pai semanalmente. A gente sabia quando ela estava na casa. Janelas eram abertas. Portas deixavam o vento passar. Havia uma vitrola tocando boleros. O dono do armazém entregava caixa de vinhos. O fazendeiro, aos poucos, começou a dar seu ar de graça. Havia vencido o luto, a perda irrecuperável? Os negócios, depois da grande geada negra, que dizimou os cafezais e levou os abonados à bancarrota, voltaram a prosperar. No lugar do café, a soja ou fazendas de gado e de cana. Comprara implementos agrícolas modernos, viajava às feiras de agronegócios, contratava técnicos. Adeus, agricultura do atraso!

– As más línguas… os invejosos…

O fazendeiro remoçara. Ria facilmente. O que acontecera, afinal?

– Estava amando? Ah, esses amores na idade madura levam à loucura da felicidade!

Soube-se que fez uma viagem de férias ao Caribe. Quando retornou, estava bronzeado e parecia mais feliz.

– Aquela terra é mágica. Foi sozinho?

A pergunta que a população fazia. Impossível alguém veranear no Caribe sem companhia. Mas quem? Desde que enviuvara nenhuma mulher era vista na imensa casa, a não ser as visitas da filha. Dela, nenhuma suspeita. A curiosidade roia como soda cáustica. Conversas abafadas circulavam. Havia, também, a ciumeira: muitas viúvas e desquitadas olhavam-no como porto seguro.

– Mulheres assim se tornam perigosas. São capazes de contratar detetives para ir ao fundo da raiz.

Estavam indignadas e ansiosas. Policiavam a vida dele. Questionavam os funcionários da fazenda. Esmiuçavam. Teciam enredos. Cavoucavam absurdos. Ninguém consegue guardar segredos por muito tempo. De tanto pisar o mesmo solo ele se move.

– Acabe com o mistério.

A notícia correu a cidade: Joana estava grávida. Mas de quem? Nunca era vista com namorados.

– Deus do céu!

Sim, é o que está pensando. Cesário e Joana eram amantes.

– Desde quando?

Ah, isto não se sabe. Uns dizem que desde menina. Há controvérsias. Isto é medonho, não é?

– Os filhos aceitaram?

Foi uma tragédia. Expulsaram Joana e o bebê. Agrediram o pai. Novamente a casa cerrou as janelas e as portas e ninguém mais viu Cesário administrando os negócios.

– Será que ele assediava a menina desde a sua chegada?

Ah, eis o mistério e a dúvida. O que se pode afirmar sobre as diversas formas do amor?

– Nunca mais se encontraram?

O que se sabe é que Cesário não passou o resto de sua vida naquela casa. Fechou as portas e janelas e deixou o tempo roer as paredes.

(*) Professor, contista e romancista. Publicou mais de 30 livros, entre eles GERAÇÃO VIVA, O SOL DOS TRÓPICOS, PÉS-VERMELHOS, SANGUE VERDE e ESTAÇÃO DAS TREVAS.