Este texto da Acadêmica Teca Mascarenhas foi um dos premiados na primeira edição do Concurso Franklin Cascaes – Contos da Editora da Universidade Federal de Santa Catarina (EdUFSC), em setembro de 2022. O conto foi publicado na coletânea “Pandemia em contos”.
Maria Tereza Fiuza Lima Mascarenhas Passos (*)
ELA estava desde há muito naquele pequeno espaço perdido no universo e, mesmo que lhe fosse impossível determinar com exatidão quando e como chegara, sentia que ali era simplesmente seu lugar de pertencimento: a casa de madeira robusta, que guardava pálidos vestígios de coloração amarela, estava encravada nas imediações de um bosque de grandes árvores, no qual a natureza ostentava toda a sua exuberância. de alguma maneira, era uma espécie de redoma que a isolava de tudo e de todos, e a protegia até mesmo do tempo, que não dominava feito o déspota implacável de sempre e transcorria conforme seus pequenos desejos, ora de mais estrelas, ora de mais azuis, de mais silêncios…
a casa era modesta e seu interior simples, quase estoico, continha tão somente o essencial para alentar seus dias, numa expressão daquilo que considerava mais valioso:
de seus poetas preferidos, mulheres e homens que lhe falavam diretamente ao coração, guardava todos os livros que pôde amealhar pela vida afora. na maioria descorados, todos desenhados com suas anotações, passaram a ser relidos parcimoniosamente, à luz cintilante do sol ou à trêmula, dos castiçais;
os compêndios de filosofia, teorias e ensaios que durante grande parte de sua vida foram, além de fonte de prazer, objeto de trabalho, e onde se encontram as mais diferentes respostas para as mesmas instigantes questões que a humanidade se faz desde que desenvolveu a capacidade de pensar;
a seleção de discos de vinil que reunia música erudita, jazz de raiz, brasileiras e europeias da segunda metade do século XX. protegida nas capas originais, era tocada na antiga vitrola que operava graças ao sopro constante de algum serafim que dela se compadecia, a confirmar que é impossível viver sem música; ideia que a transfigurava num essencial mecanismo de sobrevivência;
a pequena coleção de canecas de porcelana, exposta num dos poucos armários, conservava as lembranças de visitas a museus, de presentes de amigos e recordações de datas comemorativas. as utilizava todas, alternadas cuidadosamente, para tomar seu indefectível chá de final de tarde, à maneira dos ingleses, onde deitava em infusão as ervas que cultivava no minúsculo canteiro da casa; lá onde coexistiam pacificamente algumas espécies de flores bem resistentes, como as orquídeas e as bromélias, e outras nem tanto, como o alecrim;
o conjunto de xales artesanais, urdidos em lã, em seda ou em fios de algodão, guarnecido e perfumado com miúdos e descorados buquês de alfazema, capim-limão e lavanda, enlaçados com delicadas fitas de cetim.
relíquias afetivas da avó materna, da mãe, alguns por ela mesma tramados no tricô ou no crochê aprendidos na longínqua infância e outros comprados nas muitas feiras de artes manuais que fizera questão de visitar por ocasião de suas viagens. todos carinhosamente preservados num rústico baú instalado aos pés da sua cama.
para seus próprios poemas, guardava incontáveis cadernos do tipo moleskine, com capas dos mais variados matizes. muitos deles já preenchidos, mas a imensa maioria constituía um infinito de folhas imaculadamente brancas, à espera da cuidadosa conjugação de signos capaz de expressar as mais genuínas emoções humanas e formar uma poética. e para completar, também um sem-número de lápis grafite sem os quais seria impensável escrever.
essa harmonia do interior da casa, contudo, não era permanente. vez por outra uma indecifrável dinâmica se apossava do espaço, quando os objetos eram translocados desordenadamente, num acintoso desafio à lucidez da moradora: discos surgiam dentro do baú, xales apareciam na estante dos livros, cadernos ocupavam o lugar dos discos e canecas mudavam de posição no armário. mas ao invés de assustar-se com as etéreas possibilidades que a obrigavam a um novo exercício de ordenamento das coisas, elas lhe pareciam inofensivas e também contribuíam para amenizar sua condição de solidão.
no seu pequeno mundo as estações se sucediam como em todo o resto do universo, embora a ela parecesse cada vez se demorarem mais.
nos dias amenos, em que o céu era mais azul e plenamente sem nuvens, acostumara-se a longas caminhadas sob as copas cerradas das árvores. enquanto pisava nos seixos e nos gravetos, era capaz de ouvir vozes trazidas pelo vento, feito lamentos, murmúrios que faziam eco ao canto dos pássaros e com eles se confundiam. folhas secas inesperadamente se elevavam do solo num bailado musicado pela brisa suave e bandos de borboletas e pequenos animais silvestres, como os esquilos, a acompanhavam por todo o trajeto. os maiores, se havia, deveriam sair somente na calada da noite, nas sombras que os protegiam dos predadores. desses passeios, voltava para casa levando sementes e frutos que colhia no caminho, como castanhas, amoras e framboesas.
naqueles dias, em que a energia solar incidia com mais intensidade, costumava depositar nas janelas da casa seus vasos com as begônias de cores vibrantes e os delicados amores-perfeitos. um modesto luxo que brindava de prazer seus olhos cansados, enquanto os inquietos beija-flores chegavam mais junto à casa, lhe serviam de distração e amenizavam a insuportável opressão no peito. era quando também aproveitava para andar descalça pelo naturalmente tépido piso de madeira e quase podia sentir que caminhava sobre vestígios de outros passos humanos que ali passaram; essa sensação a deixava tomada por uma indizível emoção, que a sobressaltava e lhe fazia acelerar o coração.
contudo, quando assomava o inverno, os dias se tornavam mais curtos e traziam consigo as nevascas, cujos cristais de gelo predominavam sobre a paisagem que em alguns pontos chegava a ser translúcida e bem poderia servir de cenário a um dos icônicos filmes de Bergman. o percurso da habitual caminhada passava a ser mais breve, pelo receio de perder-se na vasta região insular e congelante, silenciosa feito uma gruta. andava com lentidão e cantava debilmente um mantra, quase em oração, enquanto afundava os pés no lívido e macio tapete que se estendia por entre as árvores.
certa vez, sua solitária trajetória foi interrompida por um acontecimento fantástico. eis que subitamente viu-se envolvida por uma luminosidade tão intensa que chegou a cegá-la momentaneamente e foi quando voltou a enxergar que se deparou com um belo ser de aparência feminina que logo se revelou ser uma Dríade, conhecida também como ninfa dos bosques. apesar de ficar absolutamente estupefata, ao invés de medo ela se sentiu tomada por um incrível fascínio. naquele momento o bosque se tornara encantado com a presença mágica e instigante da jovem ninfa, que embora desprovida de asas, de tão leve e delicada parecia flutuar. a comunicação que espontaneamente passou a se estabelecer não era de palavras, mas ela foi capaz de depreender que se tratava de um ser benfazejo, agraciado com o dom de profetizar, curar e nutrir, e que escolhia seus eleitos a bel-prazer. misteriosamente como veio, a mítica ninfa desapareceu, após transmitir uma mescla de sensações que a deixaram energizada e rejuvenescida, muito embora sua natureza racionalista se recusasse a admiti-lo.
com a bondosa Dríade aprendeu os segredos das ervas, cujas infusões resultavam num maior equilíbrio emocional e contribuíam para aguçar sua memória, atenuar as mazelas da idade e, principalmente, amenizar a tristeza. os ensinamentos possibilitaram o enriquecimento da pequena horta e a ingestão dos estimulantes chás.
foi num daqueles raros encontros que a ninfa dos bosques, em sua generosidade, lhe transmitiu o segredo de domesticar o fogo sem agredir a natureza. desde então, começou a voltar para a casa carregando um punhado de brasas ardentes na concha das mãos, tão prudentemente como se transportasse pérolas. com elas acendia o fogão, as lareiras da sala e dos três quartos de dormir. muito embora vivesse inexoravelmente sozinha, se empenhava em manter aquecida a casa inteira, porque havia incorporado a curiosa dinâmica dos objetos e aquela sensação dos passos: se outras pessoas ali existiram não lembrava quem eram e por que haviam partido; mas se conviveram sob o mesmo teto significava que formavam uma família, unida por vínculos afetivos. e se um dia elas quisessem e pudessem voltar para o lar, os cômodos aquecidos que transformavam a casa num grande ninho aconchegante sinalizariam que a esperança da volta sempre esteve presente em seu íntimo.
e quando voltassem, seriam capazes de reconhecê-la, agora que se sentia mais velha que uma sequoia, com os longos cabelos brancos como uma cerrada neblina (embora no inverno ainda os enfeitasse com minúsculos sincelos luminosos e no verão os prendesse com um feixe de plumas recolhidas pelo caminho) e os movimentos lentos como se dançasse uma valsa de Strauss?
quando voltassem, de que lugar frio e longínquo voltariam?
quem sabe de uma profunda cratera escondida no gelo… de um imenso iceberg à deriva no Ártico… das inóspitas cordilheiras do Himalaia…
ou o lugar em que estiveram seria um lugar inominável, mais frio do que todos os que se pudesse suspeitar?
havia um, ela sabia, apenas um lugar mais frio do que qualquer outro que jamais existiu
— esse lugar se chama Esquecimento.
porém, enquanto a ela fosse concedido permanecer sobre a face da terra jamais desistiria de buscar suas lembranças perdidas, pois não poderia imaginar que sequer um dos seus afetos sucumbisse naquele lugar-nenhum. esse era o motivo pelo qual ela envelhecia com tamanha resistência e desaceitação: a certeza de que somente sua memória seria o bastante para conservá-los vivos, dentro de si e daquela aconchegante casa vazia.
era chegado o outono e o dia se despedia mais cedo, quando ela instalou um disco de Mahler na vitrola e acomodou-se confortavelmente no sofá. de olhos semicerrados e respiração lenta, foi sendo possuída por uma agradável mansidão e adormeceu com a sensação de que a suavidade da música a conduzia ao íntimo de sua própria alma.
um impreciso lapso temporal escoou, quando ela voltou a abrir seus olhos a música ainda soava, ainda se encontrava em sua casa, ainda no mesmo lugar, mas não mais sozinha; junto a ela estavam três pessoas desconhecidas, um homem, uma mulher e um jovem. duvidou se sonhava ou se estava verdadeiramente desperta, em virtude da surpreendente situação, que a ela não causou perplexidade, nem mesmo quando, em desassombro e naturalmente, a mulher achegou-se mais e com uma aveludada voz começou a falar…
este é o ansiado momento do retorno e do nosso reencontro. é passado o tempo do esquecimento, finalmente chegou a hora de abrir o coração e libertar a memória. amada filha, mira fundo nos nossos olhos porque através das lágrimas haverás de reconhecer o pai, a mãe e o irmão que há tantos anos, intempestivamente, se foram e te deixaram sozinha, naufragada em um nebuloso oceano de deslembranças.
o amor, que jamais deixamos de sentir, nos impulsionou a voltar. e aqui estamos, para narrar a história de horrores que nos coube viver. todavia, antes de iniciarmos, é com profunda consternação que te rogamos que encoraje teu frágil coração, a fim de suportar o choque de realidade que irá te arrebatar:
no tempo em que nossa família era unida e feliz, inesperadamente, eclodiu no Oriente uma nova doença, que logo se manifestou como gravíssima, diante de seu enorme componente contagioso e forte potencial letal. causada por um desconhecido e poderoso vírus que ataca inicialmente o sistema respiratório, rapidamente tomou conta dos quatro cantos da terra; avassaladoramente se disseminou por todo o planeta, matando de imediato centenas de pessoas e se configurando como uma terrível pandemia, uma vez que todos os continentes, sem distinção, foram atingidos pela doença que passou a ser conhecida como o Novo Coronavirus ou Covid-19.
como raríssimas vezes na história, em razão da arrasadora pandemia, a humanidade inteira entrou em colapso e passou a viver dias de pânico, irmanada no medo e na dor.
num esforço hercúleo de controlar a disseminação da assustadora doença, competentes e incansáveis cientistas do mundo todo, representados pela Organização Mundial da Saúde, OMS, se uniram na busca de uma vacina que pudesse contê-la e evitar sua assustadora proliferação. simultaneamente, se estipulou um meticuloso protocolo de conduta para orientar a população a se isolar nas residências, a evitar o agrupamento físico, a adotar máscara facial de proteção, ao uso constante de sabão e álcool 70 para higienizar as mãos, como medidas de prevenção e contágio.
contudo, a despeito de todos os imprescindíveis alertas comprovados e emitidos pela ciência, considerável número de negacionistas — aqueles que se recusam veemente a reconhecer o avanço científico, suas teorias e seus incontestáveis benefícios — inescrupulosa e cruelmente disseminaram um sem-número de falácias, movidos pela ignorância, pela má fé ou pela desumanidade. são eles, principalmente, líderes de Nações, com destaque para o do Brasil, representantes políticos, autoridades religiosas, influenciadores culturais e outros, que manipulam o senso comum no uso pernicioso de seus poderes de persuasão e convencem uma horda de seguidores incautos.
como soe acontecer em situações de calamidade, a OMS identificou como principais grupos de risco os formados pelas pessoas mais vulneráveis, os idosos, os portadores de doenças respiratórias crônicas e todos com algum tipo de comorbidade. porém, infeliz e lamentavelmente, a doença, que num primeiro momento vitimou esses grupos, veloz e agressivamente se espalhou para além deles e acometeu dezenas de milhares de pessoas mundo afora.
desprovidas de vacina, centenas de pessoas se aglomeravam nos ambulatórios, nos hospitais ou desamparadas nas casas; na exiguidade de assistência, de leitos e de aparelhagens. doentes de todo o mundo passaram a morrer aos milhares, na grande maioria das vezes assistidos com o zelo e o frustrante sentimento de impotência dos incansáveis e dedicados anjos da saúde, como foram carinhosamente chamados os profissionais da área: médicas, médicos, enfermeiras, enfermeiros, fisioterapeutas, técnicas, técnicos e demais envolvidos com os pacientes.
numa atrocidade sem paralelos a covid-19, até aquele momento, dizimou um milhão e oitocentas mil pessoas no planeta. dentre elas, se incluem as duzentas mil vítimas brasileiras que sucumbiram à espera da ansiada vacina, número que lamentavelmente inseriu o país em segundo lugar no infeliz rol das vítimas fatais.
sem a chegada da vacina salvadora, centenas de milhares de pessoas passaram a morrer prematuramente. muitas, sem sequer o conhecimento de seus afetos, entre elas idosas, jovens, doentes e saudáveis; todas, sem nem uma única exceção, no sofrimento da dor e na agonia do sufocamento.
distantes de seus amados, impossibilitadas do conforto de um olhar, um beijo, um abraço, um afago nas mãos, na terrível hora da fatal despedida.
milhares de famílias enlutadas ficaram sem ação diante do inquestionável morticínio, onde inúmeras vítimas, desumanamente, tiveram seus corpos insepultos em caminhões refrigerados, outros, lançados desapiedadamente em covas coletivas abertas por maquinários, muitos sequer sem a devida identificação.
assim, minha querida, também nós fomos vítimas dessa tragédia da humanidade que, inexplicavelmente, por obra do destino, do acaso ou dos deuses, te poupou. nós partimos para outra dimensão, mas seguimos te acompanhando e abençoando. e foi esse o motivo, nossa partida intempestiva, que ocasionou o trauma da amnésia que te acometeu e te resguardou até aqui desse sofrimento incalculável, para o bem ou para o mal.
enfim, agora que estamos todos enlaçados nesse abraço tão desejado, abraço de chegada e de despedida, queremos te fazer um pedido: escreve a nossa triste história, para os que vierem depois de nós e tiverem oportunidade de fazer diferente. deixa registrado, como documento e como legado, o terrível tempo em que fomos obrigados a viver e que, talvez ou certamente, poderiam ter sido diferentes, se a humanidade fosse melhor.
e se desvaneceram no silêncio…
posso dizer que estou apaziguada e também imbuída da certeza de que nada voltará ao que era antes.
acredito que as restrições impostas pelo isolamento, as dores dos afastamentos e das perdas, as experiências de medo e de luto atribuirão uma nova dimensão à palavra normalidade. nem os oráculos lograrão vaticinar o tempo necessário e a incerteza que advirá dessa fragilização da história. viver será completamente diferente e será imperativo refazer o caminho e reaprender a caminhar.
acredito no surgimento de uma nova ordem e no aprendizado de uma lição em nível planetário; que se expandirá a compreensão de que o mundo espelha nossas escolhas; que somente sobreviveremos como humanidade numa fraterna relação de interdependência com todos os seres viventes.
finalmente, acredito que com essa tomada de consciência estaremos palidamente reverenciando as perdas desses milhões de vidas e o desmedido sofrimento causado por tamanha catástrofe.
P.S. essa escritura é uma tentativa de atender ao pedido da minha amada família que, assim como eu, sabe que o esquecimento é o lugar mais frio, mas que lá nunca esteve e nunca estará.
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(*) Nome literário de Maria Tereza Fiuza Lima Mascarenhas Passos. Nasceu em Rio do Sul (SC). Graduada em Filosofia pelo Instituto Federal do Paraná/Palmas (IFPP) e mestra em Educação Superior pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), seguiu carreira acadêmica como professora universitária. Atualmente dirige o Bureau d’Art Teca Mascarenhas, onde escreve e atua como revisora de texto. É titular da Cadeira 25 da Academia Catarinense de Letras (ACL), titular da Cadeira 7 da Academia de Letras de Balneário Camboriú (ALBC), e sócia da União Brasileira de Escritores (UBE). Publicou os livros: Néctar, morcegos e beija-flores, nem parece que é AVESSO, Meu singular é plural, Tempo de migração, Poesia capturada: poemas e fotos (fotos de Paulo de Tarso Brandão) e Peso-Pena, obra finalista do Prêmio Jabuti/2020, Categoria Inovação, na Coleção I do Mulherio das Letras; tem participação em diversas coletâneas, no Brasil e no exterior.