Epaminondas sempre foi considerado um bom sujeito, tranquilo e cordato. Epa, para os íntimos. Às vezes se chateava com o diminutivo, que mais parecia um susto ou uma topada. Mas, tomando tento, se conformava, pois o nome que o padrinho lhe dera na pia batismal soava pior que o apelido. E considerando a típica preguiça na fala nacional, que torna a linguagem mais rudimentar do que já é, nada mais natural que ser chamado Epa.
Roberto Menezes (*)
O nosso herói era capitão intendente da Polícia Militar. Estava sempre a verificar balancetes e números no quartel. Tinha uma boa casa na Costeira do Pirajubaé, bairro da bela Floripa, onde o esperava todos os fins de tarde a mulher nervosa, de cenho franzido, sempre a enquadrá-lo pelo mínimo deslize.
A geniosa Odete, mãe de seus cinco rebentos, fazia o quieto Epa rezar por um breviário cheio de deveres, atormentando a paciência e azucrinando os ouvidos do infeliz com uma surda e metódica pauta de recriminações. E, o que é pior, sofria o Epa o assédio nada amoroso da sogra Conceição, fiel escudeira da filha. A mulher, matrona devidamente passada, sempre que se apresentava alguma ocasião, descontava no genro os recalques da vida.
Epa às vezes viajava a serviço para o interior do Estado. Nessas andanças, numa noite quente em que saíra a paisano do quartel de Canoinhas para espairecer um pouco, embora estivesse para o crime, foi acabar num restaurante com música ao vivo, onde conheceu a mulher que iria dar um novo colorido à sua vida de rotina em preto e branco. Penélope era uma loura oxigenada, no vigor dos seus trinta e tantos anos, com as formas ainda lembrando um violoncelo. Estava acompanhada de algumas colegas, descasadas e livres como ela, esperançosas de arrumar algum coroa de boa pinta e boa grana. Nas horas vagas, trabalhava ela numa lojinha de perfumes.
O Epa encantado, e já com aqueles olhares mortiços de Casanova, tirou-a para dançar. Tocava o tango “Perfídia”, muito próprio para a ocasião. O capitão, pérfido como nunca se sentira, dançou tão bem que, ao final, foram aplaudidos. Nisso, pelo menos, ele pontificava. Era considerado o pé de valsa por excelência nas domingueiras do passado e ainda não perdera a embocadura. A Penélope, extasiada, deixou–se levar pelos pés sincronizados e pelas palavras açucaradas do Epa. Ele se disse solteiro, sem qualquer compromisso e ela acreditou de pronto. O entusiasmo do capitão só arrefeceu um pouco quando ela lhe confidenciou que, apartada, tinha três filhos, um de cada pai, como convinha a uma mulher moderna e independente.
Adiou o Epa o quanto pode o seu retorno a Floripa. Chegara às vias de fato nos apetitosos braços da pródiga Penélope, num hotel barato, e queria estender o quanto pudesse a feliz aventura. Nenhuma proibição, nenhum incômodo, nenhuma sogra, somente flores e bombons. Sentia-se um verdadeiro Adão com sua Eva platinada.
No entanto, até as flores perdem as suas pétalas quando chega o frio, ficando os espinhos. Ela um dia descobriu, ao esmiuçar as malas do amado no hotel, a foto da matriz e seus cinco pimpolhos. Fez um solene furdunço, insensível às desculpas do pasmo e mortificado Epa. Porém, ao final, já composta e menos atarantada, resolveu aceitar a situação, até porque o amante lhe prometera de joelhos coisa melhor para o futuro.
E seguiu na empreitada, deixando o lampeiro Epa sobejamente satisfeito. A loura esperançosa ouvira na tevê que um tal de Balzac afirmara estar a mulher no ponto quando alcança trinta, e sua rival já passara dos quarenta. Deixar correr, foi o que achou melhor fazer.
Epaminondas, enfim, teve que voltar para casa e para a sua Odete. Não se podia furtar a comparações, considerando esta melhor quando com ela se embrulhava nos conjugais lençóis, mas achando a outra mais quente e determinada, quando com ela embolara naquele hotel chinfrim.
E ficou nesta dúvida metafísica por um ano, viajando muitas vezes a serviço para Canoinhas. Conseguira a proeza de arranjar serviço e mais serviço no tranquilo quartel do norte. Com o passar dos meses mais insatisfeito ficava, pois não confiava muito na ainda fogosa Penélope quando a deixava sozinha, além de, em casa, ter sempre o espectro da sogra Conceição na sua sombra.
Resolveu, finalmente, romper com a Odete em definitivo, deixando-a só e desesperada com os cinco filhos. Deu como desculpa a inexorável busca do amor, esquecendo por completo que ainda tinha obrigações. A desconsolada consorte, na verdade já sem sorte, ficou a carpir as suas mágoas, ajudada neste mister pela prestimosa mamãe Conceição, que não se cansava de brindar o pobre do capitão Epa com adjetivos impublicáveis. Seria ela a primeira a lhe dar uma surra, se tivesse ocasião de enfrentá-lo. Afirmava em altos brados que, apesar de detestar se meter na vida do casal (embora as maledicentes ousassem afirmar ser a sua atividade de rotina), a afronta teria que ser vingada, de um jeito ou de outro.
O Epa desapareceu por uma semana. Esquecia de tudo nos braços da Penélope, fazendo com ela uma turnê amorosa no norte catarinense, lua de mel renovada e inesquecível. Enquanto isso a Odete, ainda não refeita do atropelo que o marido lhe impusera, começou a pensar não no seu bem, mas nos seus bens. Urgia cuidar de uma alentada pensão, para o infiel saber que com ela a coisa era mais embaixo. Conseguiu, por fim, falar com o Epa por telefone, quando este lhe afirmou a disposição de ficar com Penélope e esquecê-la. Parecia estar tudo acabado.
Mas, como para cada tempestade que anuvia os céus, segue-se uma aprazível e duradoura bonança, alguns dias depois, recebeu Odete um telefonema do Epa. Mostrava-se arrependido, reconhecia ter cometido um grande erro, e pedia humildemente à esposa para voltar. Ela quase desmaiou. Como um raio, passaram por sua cabeça os mais disparatados pensamentos. Quis xingar, ofender, injuriar, sentenciar, guilhotinar, a mãe ao lado já pronta para desfiar impropérios, mas tudo o que conseguiu balbuciar foi: Volta, meu nego! …
O Epa entrou em estado de choque. Esperava ouvir o diabo, quieto e resignado, rumorejando sentidas desculpas. Mas a mulher o chamava, desmemoriada. Deu pulos de alegria e prometeu voltar no mesmo dia. Não queria mais a Penélope, pelo menos por enquanto.
O que a plebe não sabia é que o Epa, após a lua de mel, voltando à razão e fazendo contas, concluiu que, com duas mulheres e oito filhos, caminharia inexoravelmente para uma bancarrota sem moratória, sem salário de capitão que desse jeito. Preferiu a oficial, até porque era isso que todos os fofoqueiros da rua esperavam dele.
Foi aceito muito bem em seu castelo, aos beijos e abraços, incluída nesses carinhos fagueiros a sogra temível, que mui sabiamente esqueceu a surra prometida, e resolveu festejar o regresso do faltoso e o alívio da filha. E ele voltou, mesmo com cara de matungo enjeitado, arrependido e contrito.
E na primeira sexta-feira, quando num salão de bailes na Costeira começaram a ecoar os acordes barulhentos de uma música pseudo-sertaneja, resolveram Epa e Odete, acompanhados da sogra faceira, divertir-se e dançar até a noite se fazer cansada.
A Conceição, que depois de viúva nunca mais dera confiança pra marmanjo, se pôs a dançar com o Valdevino, um indolente solteirão amigo do genro, que os acompanhara. Ela não se contentou com o pobre e saiu a dançar com os mais próximos, lembrada e saudosa das farras de outrora, muito lampeira, distribuindo risadas e gracejos a granel. Comemorava o retorno da filha ao rol sacrossanto das senhoras casadas.
Quando o conjunto musical sapecou o Moreninha linda, do Tonico e Tinoco, Conceição entrou em transe e tirou o Epa pra dançar. E lá se foram eles no piso escorregadio, arfantes e felizes.
Finalmente, como sempre afirmara antigo bardo inglês, que escrevia dramas e tragédias tão ao gosto do povão, tudo está bem quando termina bem, pois, na verdade, houve muito barulho por nada. A dúvida hamletiana do ser ou não ser não mais existia. Todos, exceto a deserdada Penélope, viviam o sonho de uma noite de verão e a megera Conceição domada estava. Sem esquecer o fato de que as alegres comadres da Costeira tinham munição de ano inteiro para seus mexericos.
E, como desfecho, Epa e Odete voltaram a ser Romeu e Julieta, porém sem sonífero, punhal ou poemas.
Pelo menos por uns tempos…
P. S.
Após o baile, Epa não deixou por menos. No mês seguinte reatou informalmente com os braços quentes da Penélope, embora permanecesse com Odete. Economizaria dobrado. Mas, um ano e pouco mais depois, quem soubesse da esposa e da amante, ficaria surpreso com um novo capítulo das dúvidas existenciais e sexuais do capitão Epa. Ele enfiou de vez o pé na jaca, sem retorno, pediu passagem para a reserva remunerada, deixou as duas e fugiu com uma garçonete ruiva e sarada de vinte aninhos.
Essa nem Freud jamais explicou.
(*) Roberto Rodrigues Menezes é contista, cronista, poeta e ensaísta. Autor de sólida formação intelectual e profissional, tem dezenas de livros publicados. Coronel da Polícia Militar de SC, sua posse na cadeira 17 da Academia Catarinense de Letras foi umas que trouxeram mais público, na modalidade presencial como na virtual, pois estávamos em plena pandemia da Covid-19. O autor tem dezenas de livros publicados e alguns de seus textos integram mais de trinta antologias.